quinta-feira, 6 de março de 2008

Dez anos de beijo na boca...

O meu processo de descoberta da homossexualidade foi bastante gradual. Com 17 anos, percebi que sentia algo diferente por um certo vizinho gostosão (moreno, alto, fortão, carioca, ginga safada e cara de bandido), mas não encontrei no meu ambiente familiar a receptividade que eu precisava, naquele momento, para ir lá e ver qual era. Quando vi que aquilo iria dar uma encrenca que eu ainda não tinha condições de enfrentar, enterrei o assunto. Quase dois anos depois, aproveitei um curso de férias na Europa (minha primeira vez completamente sozinho no mundo!) para tentar dar meus primeiros passinhos naquele mundo completamente desconhecido.

A Inglaterra estava apinhada de brasileiros e eu tinha aquelas paranóias típicas de iniciante-enrustido: achava que, se fosse a um clube gay em Londres, algum conhecido iria me ver, a notícia se espalharia e, quando eu voltasse para o Brasil, meu rosto estaria estampado em todas as capas de jornal e eu seria apedrejado em praça pública. Para evitar isso, resolvi que o meu début tinha que ser num lugar mais seguro, e me mandei para a Escócia - em Edimburgo, não haveria o menor perigo de a notícia vazar.

Descobri que o principal bar e a maior boate gay da cidade eram vizinhos. Cheguei ao lugar e fiquei do outro lado da rua, com as mãos nos bolsos, estudando o movimento das pessoas na porta, tremendo naquela noite de verão. Levei mais de meia hora para tomar coragem e atravessar a porta giratória do bar, que era parecida com a do nosso Ritz. Imediatamente, todos os olhares se voltaram para aquele garotinho com cara de assustado. Não agüentei cinco minutos e voei de volta para minha calçada segura.

Restava, ainda, a boate. Claro que não dava para ter a menor idéia do que se passava lá dentro. Imaginei um grande galpão com luz baixa, homens mal-encarados em roupas de couro, jogando bilhar, fazendo sexo na penumbra, correntes nas paredes. Minha cabecinha tratou de construir a cena: eu cruzaria a porta, todas as atenções novamente se voltariam contra mim e, de repente, alguém gritaria: "Peguem esse menino!!! Vamos já iniciá-lo!!!" Dois caras me agarrariam à força, e sabe lá que maldades fariam contra a minha pessoa, talvez me acorrentassem... Fiquei completamente apavorado e fugi correndo da esquina, de Edimburgo, da Grã-Bretanha, da Europa. Sem ter entrado em uma boate gay. No fundo, eu ainda não estava preparado.

Mas as coisas vieram no seu tempo certo, por etapas. Conheci dois caras mais velhos que tiveram comigo uma conversa muito esclarecedora, que mudou a minha vida (e em seguida desapareceram, como se fossem anjos enviados até mim apenas para me dar aquele recado). Depois, uma amiga fervidíssima do colégio se revelou bissexual para mim. Quando eu finalmente lhe contei sobre a minha indefinição, ela ficou eufórica e acabou virando minha "madrinha". Foi ela que me pegou pela mão e, depois de muita insistência, começou a me levar aos lugares, em São Paulo.

Desci pela primeira vez as escadarias da Tunnel ao som de "I Say A Little Prayer", da Diana King, para encontrar uma cena muito mais inofensiva do que a que eu havia imaginado. Comecei a rir de mim mesmo e do quanto eu havia sido bobo (hoje vejo que aquele lugar era bastante inofensivo mesmo, quase uma "auto-escola da noite gay"). Estávamos no final de dezembro de 1997. Saí com a Corinne algumas vezes (o que não deixava de ser um excelente álibi para minha família), mas aquelas bibas novinhas não me despertavam o mesmo interesse do meu antigo vizinho. Não quis muita intimidade com elas.

Até que chegou o Carnaval de 1998. Sérgio Kalil, o então rei da noite gay da cidade, promovia os concorridos bailes do Basfond, que lotavam um amplo porão na rua Lisboa. São Paulo inteira ia para lá. Eu e Corinne conhecemos dois carinhas na fila, entramos todos juntos, nos divertimos... até que as luzes se apagaram e a música parou, os alto-falantes começaram a gritar "BLECAAAAAAUTE... BLECAAAAAAUTE" e um dos caras me agarrou e me tascou um beijão. Foi assim que eu, finalmente, desencantei e comecei a viver minha vida gay. Era a noite do dia 24 de fevereiro de 1998.

Nesses dez anos, estive em muitos lugares, vivi momentos incríveis e conheci seres humanos de todos os tipos. Alguns deixaram sua marca, outros passaram sem nenhum vestígio, nenhuma lembrança. Conquistei amizades especiais, cada uma no seu tempo e do seu jeito. Tive também que lidar com o lado negativo das pessoas e criar minha casca de defesa. Tudo isso me ajudou a amadurecer, construir minhas opiniões, ver do que eu realmente gostava e qual o lugar que eu gostaria de ocupar no mundo. Hoje, eu me considero um cara bem-resolvido. Não carrego bandeiras, mas também não vivo escondido, muito menos deixo de fazer as coisas que quero. E espero que, daqui a outros dez anos, meu balanço seja ainda mais positivo.

[Esse texto deveria ter ido ao ar no dia 24 de fevereiro de 2008, exatamente 10 anos depois do tal primeiro beijo, mas só tive tempo de terminá-lo e postar agora].

29 comentários:

Anônimo disse...

Eu vou abusar da sua boa vontade na moderação dos comentários e lembrar da paixonite universitárias da nossa amiga "Shirley", lá pelos idos de 1999...

Ah, como o tempo passa... :)

E ontem eu vi: os calouros estão melhores que nunca...

Anônimo disse...

Ótimo texto, Thiago... Conseguiu traduzir em palavras aquilo que talvez todos nós sintamos ao dar os primeiros passos no temido "mondo gay"... rsrsr E são várias primeiras vezes: a primeira paixão, a primeira boate, o primeiro beijo, a primeira sauna (essa pra mim foi a pior, eu tinha uma imaginação muito over do que eram as saunas), o primeiro relacionamento e por aí vai... É muito bom relembrar esse momentos... E interessante pensar que há muitas pessoas nos quatro cantos do mundo passando pelas mesmas sensações nos dias de hoje... Abraço, Shoichi

TONY GOES disse...

Esse lance do entra-não-entra na boate... é típico, pelo menos aocnteceu comigo - e DEPOIS de eu ter dado meu primeiro beiojo e transado com um cara. É o medo de se assumir publicamente, de passar alguém na rua, de encontrar conhecidos lá dentro. E claro que eu encontrei: ninguém menos que a filha do meu chefe o vice-presidente da agiencia onde eu trabalhava. Todos me cumprimentaram como se nada, e uma enorme ficha caiu dentro de mim.

Anônimo disse...

GOSTEI MUITO DO TEXTO!
TUDO ROLA DE FORMA GRADATIVA NÉ?
DANIEL

Anônimo disse...

Texto ótimo. Tããão bom ler sobre coisas com as quais todo mundo se identifica, e não só house, house, house, house e bate-cabelo uuuuuu baygon.

Anônimo disse...

Adorei esse post :)
muito interessante..sou novo ainda..sou um pouco como você era (:
enfim..parabéns (Y)

Antonio disse...

Meu, adorei o post! tambem guardo com carinho esse meu momento!...
Ah!! acabei de ouvir o podcast!...rss...que bom te ouvir!!
bjos

Unknown disse...

É a duodécima vez que vou à argentina e ainda suas dicas me serão esclarecedoras na proxima visita. Muito bom seu blog. E que início dificil e conflitante mostrado nesse último post!
Aproveite e veja meu blog:
www.japearson.blog.uol.combr
Abraços.

Anônimo disse...

Texto perfeito! Já comentaram o que penso, então não preciso repetir. Parabéns e enorme abraço!

Alexandre Lucas disse...

Boas lembranças fazem o passar do tempo parecer que vale a pena =)

Anônimo disse...

cara de bandido?!
eu quero!

André Mans disse...

o meu faz 10 anos tb
mas foi bem mais simples que a sua neuro toda
hehehe

bj

Too-Tsie disse...

Todo mundo se identifica um pouco não é?
Em 97 eu me iniciei na notche, mas eu estava bem acompanhado de amiguinhos internéticos.
Rolou um encontro na Rua da Consolação (Paparazzi), e depois das devidas introduções, rolou uma caravana até a finada MadQueen.
Fiquei embasbacado com o lugar, eu que estava acostumado com as matinês, aquilo era um mundo totalmente diferente.
Me assustou também um beliscão que eu levei na bunda.
E foi assim, depois disso não teve mais volta.

Leandro disse...

adorei gatão! beijokas

Leo Lazzini disse...

"A Inglaterra estava apinhada de brasileiros e eu tinha aquelas paranóias típicas de iniciante-enrustido: achava que, se fosse a um clube gay em Londres, algum conhecido iria me ver, a notícia se espalharia e, quando eu voltasse para o Brasil, meu rosto estaria estampado em todas as capas de jornal e eu seria apedrejado em praça pública."

Hhehe uai, com vc tb eh?!

ja ja eu faco aniversario de 4 anos. quatro anos, nenhuma boate gay no brasil, 7 homens ao todo, um blog e um amor incondicional de bambear as pernas.

e vamu que vamu! :)

sempre.

Nícholas Vasconcelos disse...

Cara, muito bacana o texto.
Essas duvidas e sensações acompanham todos, incrivel como voce transmitiu o que sentia sem ser piegas, arrogante ou coisa parecida.
Tô com 21 e ainda passo por muitas dessas inquietações, ainda mais tendo mudado pra uma cidadezinha de interior.

Parabens!

Unknown disse...

97??? Se bobear, eu ainda brincava com os bonecos do Cavaleiros do Zodíaco... hehehehehe, just joaking.

Acho que me iniciei com o seu vizinho! Sim, o meu primeiro beijo foi em um cara com a mesma descrição.

Boa... abração!

Estefanio disse...

O meu outing foi tao natural, quase um outing hetero, todas akelas etapas com o mesmo minino, o bad boy da escola, q ninguem nem desconfiava e a gente nem se olhava na escola, mas na casa dele a coisa pegava fogo! Claro, q tinham todas essas duvidas e medos, mas pra mim foi tranquilo, quando comecei na noite ja sabia bem o q gostava e queria, e hj to aki, me tornei esse semi-anjo q vc conhece! hahahaha

Anônimo disse...

adorei o post! Mas e o menino carioca com cara de safado??? não deu em nada??? fiquei curioso! rsrsrs.. tbm adooooro cariocas com cara de bandido! rsrsrsrrss.. se quiser, me manda um email ae através do meu site... gostei das suas opiniões... se quiser, me add no MSN: dgremix@hotmail.com

Bjaum
Diego
www.diegomix.com

Anônimo disse...

Muito bom! Acredito que muitos de nós, gays, nos identificasmos.

Alberto Pereira Jr. disse...

primeiro parabéns pelos 10 anos!.. farei 4 em novembro... realmente dar o primeiro passo na seara gay é difícil, a oferta é vasta, mas os medos e preconceitos internalizados são maiores ainda..

Jackson Morais disse...

Legal ler seu post. Bacana saber um pouco da história de cada um.
;-)

Xandecarioca disse...

Já ouvi essa história mais de 1 vez, mas não custa dar mais uma "lidinha"... rs... bjs e boa semana!

deco disse...

"carioca com cara de bandido" Marcos: manifeste-se. hehehehehe brincadeirinha.....O primeiro lugar gay que fui quando cheguei em SP ,nos idos de 197..,bem deixa prá lá, foi o 266 West,de nome impagável.Ficava ao lado do atual Chopp Escuro,que era bem diferente na época. Lembro que tinha pipoca numa enorme taça.Tomei dois camparis,fiquei zonzinho e entrei no HS da Marquês de Itú com seu inesquecível piso quadriculado.Hoje funciona o Bailão no mesmo local e o piso continua igual. Foi tudo muito fácil.Aos 14 já ficava com um primo meu,cowboy,dois anos mais velho.Agora o impacto da "multidão",isto fica para sempre. Nunca tinha visto tanto "viados" juntos.Altos,baixos,gordos e magros. Uma festa para os sentidos. Tony: vc lembra deste bar, o 266 West ? E o trocadilho? Sublime, não acha? Thiago: mais um texto primososo.Vc é um narrador fantástico. abrs

Gui Sillva disse...

...angústias parecida com as que muito de nós também sentimos.
ainda bem que passa!
ao menos, para maioria!

Anônimo disse...

Com esse post você realmente conseguiu mostrar de forma até "didática" o que se passa com as pessoas que ainda estão na fase de aceitação da sua própria sexualidade (e dos outros também). E não posso deixar de ver as semelhanças do que ocorre comigo e que ocorreram com você há 10 anos. Os sentimentos parecem ser iguais, mas fazer curso na Europa (acabei indo para Suécia, pois lá realmente a chance de brasileiros seria bem pequena! hehe) e tentar descobrir mais sobre nossa sexualidade realmente não tem preço. No meu caso... não passei da porta do club e GLS. :)
Parabéns!

ER disse...

kkk

Eu sempre soube que era GAY!

Tive várias experiências sexuais com amigos, viznhos, primos cowboys, etc. Sempre preferi os meninos!

Sinta o drama!
Família evangélica.

Sai da igreja aos 16 anos. Trepei com vários dentro da igreja.

Mas tinha uma visão muito louca do que era frequentar o "mundinho gay". Sempre vinha em minha mente, "Gala Gay", Travestis, efeminados, etc.

Nunca houve educação sexual na escola nos anos 70 e 80 e em casa, meus pais eram religiosos e ignorantes. Como saber que era natural o que eu sentia?

Educação + curiosidade = ........

Fui à LA - Califórnia (Fev 88) passear na casa de uma prima evangélica. Ela me presenteou com uma passagem. Deveria escolher entre Hawai, NYC e San Francisco. Escolhi S Francisco! Ela me enviou à casa de 2 pastores mineiros. Chegando lá, eles me perguntaram o que eu gostaria de conhecer. Disse que o mundo gay! Eles me levaram à Rua Castro. Eles ficaram do lado de fora e eu entrei em um BAR/Club de Cowboys. Um cara me chamou para dançar colado e eu corri para o lado de fora, assustado.
Voltamos à casa dos pastores p dormir.
Um colchão no chão encarpetado (limpo) no meio das duas camas de solteiros encostadas na parede. Truque! As camas ficavam juntas, por isto o carpete estava limpo no meio do quarto. Desconfiei.
Já sabe, nê? Um pastor desceu da cama e começou a "brincar" e o outro tbm...
kkk
Fomos à escola dominical no domingo de manhã e logo após, eles me levaram à uma sauna dentro do campus da universidade Berkeley.

Foi tudo!

Quando voltei à Sampa, fui à uma sauna (trash) atrás do Hospital das Clínicas e um "senhor" me disse que o meu local seria o "Malícia" (disco) na rua da Consolação.

Assim começou. Tenho 42 anos. Já vivi e vi muitas transformações.

Se eu pudesse dar dois recados aos jovens, usem camisinhas e jamais desistam de encontrar alguém.

Bom final de semana onde quer que vocês forem.

Tribos?
Sempre houveram.

xoxo

Anônimo disse...

Oi, Thiago. Tem tempo que não nos vemos e tem tempo que não leio nada seu. Hoje vim ao seu blog por acaso e lembrei do quanto gosto de você. Adorei esse post.

Saudades dos nossos papos.

Beijo.

Anônimo disse...

Muito bom o texto rapaz!
Ouvi o comentário no podcast e vim no seu blog procurar.
Foi muito bom ler como aconteceu com você. Eu, apesar de ser mais velho, ainda estou no meio do processo. Atualmente já entro nas baladas, o que foi um grande passo pra quem vai sozinho e não tem amigos gays. Mas, ainda não consegui ficar com nenhum carinha. Apesar de saber o que me atrai e ter tido várias oportunidades, travo geral e por isso nunca rolou nada. Mas, é isso. Sempre progredindo! rs
Ah, já virei leitor do seu blog.
abraços!