Além de usar este espaço para falar dos meus passeios, das comidinhas que eu experimento por aí, de música, das festas e do mundo gay, resolvi passar a fazer comentários também sobre alguns dos livros que eu leio. E já começo com uma boa indicação: um livro absolutamente delicioso que eu trouxe da Espanha, chamado Historias de Chueca.
O livro é narrado em primeira pessoa por Alejandro, jornalista que deixa o pequeno pueblo em que nasceu para trabalhar e viver sua homossexualidade em Madrid. Logo na primeira noite, enquanto espera mesa para jantar na Chueca, o fervido bairro gay da cidade, ele acaba conhecendo Miguel, outro interiorano recém-chegado para tentar a sorte na capital. Eles se tornam amigos inseparáveis, praticamente irmãos, ainda que passem a enveredar por caminhos diferentes. Começam a treinar na academia mais gay do pedaço e Miguel logo descobre o mundo encantado das musculocas (versão espanhola das nossas barbies), em que se joga de cabeça, passando por todas as transformações necessárias.
A partir daí, é na odisséia pessoal de Miguel, acompanhada de perto pelo narrador Alejandro, que o livro irá se desenrolar. Enquanto eles fazem suas descobertas e tomam partido no novo mundo que lhes é apresentado, diversas pessoas vão cruzando seu caminho, num rico desfile de personagens. Entre as histórias e "causos", vemos aquilo que o universo gay tem de mais característico: a constante pressão para ser um maricón 10, a tirania do corpo perfeito, a ostentação material e o jogo das aparências, as festas e chillouts regados a sexo e drogas, o submundo dos michês e suas regras próprias, o apoio e o colo das fiéis amigas fag hags, o ciclo de arranjar namorado no inverno e livrar-se dele para galinhar no verão, as férias de hedonismo no balneário gay (Sitges ou Ibiza, mas poderia ser Ipanema), o fascínio em torno dos atores pornô, os galãs da TV que vivem no armário e aprontam horrores por trás das câmeras, os ocasionais lampejos de vazio existencial em meio à superficialidade... nada fica de fora desse verdadeiro compêndio antropológico.
O mais legal é que o autor, Abel Arana, não se porta como um chato que vê tudo de fora, com ares de recriminação; embora o protagonista das experiências mais insólitas seja Miguel, Ale não deixa de participar ativamente do mundo que descreve, e também aproveita cada experiência. O texto é inteligente e divertido, com momentos de humor finíssimo e outros de um pastelão que é típico dos espanhóis. Às vezes, parece singelo como uma crônica de Walcyr Carrasco na Vejinha, mas um olhar mais atento consegue captar uma alfinetada elegante, um sutil respingo de deboche e ironia, sempre na dose certa, sem ser over. No final de cada capítulo, o narrador resume suas conclusões em tópicos, com um tom professoral que se revela impagável (afinal, por mais que aquelas lições sejam reais, não dá para tratar aquilo como um assunto sério).
Quem tem um conhecimento intermediário da língua espanhola (portunhol aqui não resolve!) já consegue tirar proveito da leitura com a ajuda de um bom dicionário. Os que já estiveram na Espanha terão mais facilidade em visualizar os cenários retratados. Incomoda um pouco a freqüente citação, em comparações ou piadas, de cantoras e atrizes espanholas que não fazem parte do nosso universo (Abel Arana trabalhou como produtor musical de várias dessas divas). Mas isso não chega a atrapalhar os grandes momentos cômicos do livro, que são muitos e, mais ainda, são universais. Quem freqüenta o meio gay do eixo Rio-São Paulo sentirá uma identificação imediata. Nossa geração The Week está inteirinha retratada ali, com tudo que ela tem de caricato, de cômico e de trágico. Um riquíssimo raio X do que é ser gay numa metrópole globalizada, nos dias de hoje. Se Queer As Folk é o seu seriado, Historias de Chueca deveria ser o seu livro de cabeceira. Quando aquele seu amigo que foi ser chapero em Barcelona vier posar de "bunita" no Carnaval, peça para ele te trazer um exemplar.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
Historias de Chueca, nosso livro de cabeceira
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10 comentários:
Ah, sim: antes que algum xiita de plantão venha resmungar, não estou dizendo que toda a população gay se encaixa no que o livro descreve. Nem que todos os freqüentadores da The Week se comportem dessa maneira. Sei que o livro retrata apenas uma das muitas tribos que estão compreendidas no vasto e plural espectro da homossexualidade. Mas, dentro do que se propõe a fazer, o livro é excelente: um retrato fiel - e divertidíssimo - de uma tribo gay bastante presente e visível, seja lá na Espanha, seja aqui no Brasil, em boa parte das grandes metrópoles do mundo ocidental.
Seres humanos são todos iguais, né?
Valeu a dica, vou deixar uma em retibuição: o filme Chuecatown, sobre uma musculoca corretora que quer varrer a velhinhas do bairro pra vender os apes só para as finas e acaba envolvendo 2 ursos em uma suspeita de crime. É uma comédia maravilhosa, já viu?
qdo tiver pelo Rio, me avise que te dou uma cópia
Ainda estou terminando um livro de Adorno, que não ensina a fazer bijuterias, mas sim do Theodor. Dialetik der Aufklärung. Vc me empresta o das mariconas qdo terminar? Vou adorar!! Prometo que não risco as páginas. Um beijo e me liga, fio!!
Uma mistura de Carrasco com Tom Wolfe, então?
Perdi a chance: meus amigos da Europa ja chegaram pro Reveillon...rs
(Ok, eles nao foram ser chaperos, mas valeria o pedido, ne?)
Depois que você for à Londres ou Paris; ou Budapeste; ou Taipei; nos traga mais algumas sugestões de leitura.
Adorei a dica. Pena que, realmente, só indo a Barcelona para comprar. Não vende online! Estou super a fim de ler, vou pedir a um amigo para trazer mesmo.
Querido... to me mordendo por não falar espanhol (problemas de italiano... é uma m... aprender espanhol). Mas adorei a crítica :). De tudo, vemos que os gays é que são a classe universal.
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