quarta-feira, 27 de maio de 2009

O outro lado da garotinha

A mesma Cássia Eller que arrebatava multidões com seu vozeirão poderoso não tinha a menor consciência do próprio talento e era um verdadeiro poço de timidez na vida pessoal. E as circunstâncias que envolveram sua morte são bem mais complexas do que a suposta overdose de cocaína que foi divulgada com estardalhaço pela imprensa. Essas são algumas das revelações feitas em Apenas uma garotinha, biografia da cantora que leva a assinatura da dupla de jornalistas Ana Claudia Landi e Eduardo Belo.

O livro se presta a uma reconstrução minuciosa da vida pessoal e da trajetória artística de Cássia, a partir de um extenso trabalho de apuração, que colheu depoimentos de pessoas importantes da história da artista. Da amiga de infância com quem viveu seu primeiro amor até os produtores musicais e executivos da indústria fonográfica que se envolveram com a gênese de seus discos e o gerenciamento de sua carreira, uma sucessão de personagens vai sendo apresentada ao leitor ao longo da narração.

É de se elogiar a disposição dos autores em levantar detalhes e minúcias da história da cantora, num exaustivo trabalho de pesquisa. Ficamos sabendo até a cor do surrado Fiat 147 com que Cássia e sua trupe se deslocavam para os ensaios, nos tempos em que as vacas eram magras. Por meio das contribuições recebidas de suas fontes, os escritores vão construindo um rico perfil psicológico da cantora, a partir de sua origem, suas primeiras amizades, a descoberta do amor, os primeiros passos na carreira e a maneira como foi driblando os percalços do caminho. A apuração é tão bem-feita que, a partir de um certo ponto da leitura, a gente até esquece que Landi e Belo não chegaram a conhecê-la, tamanho o grau de intimidade e desenvoltura com que passam a tratar seu objeto de estudo. E o fã tem a chance de partilhar dessa intimidade, sentindo-se também próximo de Cássia.

Ao mesmo tempo em que cumpre função típica da reportagem jornalística, a obra de Landi e Belo atravessa a fronteira do gênero literário. A própria manipulação da linha cronológica, com a narração sendo iniciada pelos últimos dias que antecederam a morte da cantora, é recurso típico das obras de ficção. Na medida em que já entrega ao leitor algo que ele desejava descobrir, o livro conquista sua atenção de imediato e estimula-o a prosseguir com a leitura.

Os acontecimentos reais não são distorcidos, mas temperados com o “molho” da literatura, que apara arestas e preenche lacunas, criando um texto agradável, bem-amarrado e coerente, que não chega a descambar para o reino da ficção. O calor úmido e pegajoso do dia do nascimento da cantora, descrições que reproduzem sua fisionomia e seus cacoetes, bem como alguns dos diálogos apresentados são, possivelmente, acréscimos imaginários que foram feitos pelos escritores, traduzindo expediente que a crítica Lilia Silvestre Chaves chama de “pontes metafóricas”. Trata-se, porém, de um trabalho de ficcionalização bastante sutil, que busca deixar a obra saborosa, mas tem o cuidado de não abandonar a correção do relato – o que denota respeito à memória de Cássia.

Apenas uma garotinha faz mais do que satisfazer a curiosidade dos que querem saber sobre a vida de Cássia Eller. Ao expor a maneira como a cantora se relacionava com o mundo, o livro acaba pintando um retrato de sua geração, com o qual boa parte dos leitores certamente irá se identificar. Afinal, questões como o descompromisso e a incerteza típicos da adolescência, os desafios de escolher a vida artística e mesmo os excessos com farras e drogas, todas elas já imortalizadas por outros artistas que viveram uma existência meteórica (live fast, die young), ainda são bastante familiares ao universo dos jovens.

O livro oferece ao leitor, ainda, um olhar interessante sobre o caminho das pessoas comuns até a fama e o estrelato. Cássia venceu dificuldades de todos os tipos. Era um típico “bicho do mato” e teve que enfrentar sua timidez. Entregou a gestão da carreira a um tio que não tinha o necessário tino de administrador e provocou sua ruína financeira mais de uma vez. Foi uma artista abertamente bissexual, mas conseguiu criar seu nicho sem jamais transformar sua arte em panfletagem gay. Usou drogas e foi usada por elas – mas, apesar disso, conseguiu furar o cerco fechado das gravadoras, tornou-se reconhecida por crítica e público e ainda arranjou tempo e espaço para ser mãe. Tudo isso contabilizando sucessivos tropeços e vitórias pelo caminho. Nesse sentido, Cássia incorpora ao mesmo tempo o herói e o anti-herói. Uma história e tanto, típica das pessoas que conseguem se tornar especiais por aquilo que possuem de mais ordinário.

14 comentários:

Ricardo disse...

muito boa a crítica, parabéns!

Anônimo disse...

Se só por ser uma biografia da Cássia Eller é instigante, a vontade de ler aumentou vertiginosamente agora.

;D

Do Que Os Gays Gostam disse...

Crítica mto bem escrita... Cassia Eller foi além de tudo uma mulher constestadora dos moldes da sociedade, uma mulher q lutou por tudo aquilo que acreditava.

Deve ser um livro MA.RA.VI.LHO.SO!!!

beto disse...

sinceramente?
cássia eller morta fez muito mais sucesso do que cássia eller viva.

e sua vida/morte acabou sendo um prato cheio para uns dos clichês mais repetidos e endeusados, com pequenas variações, em diferentes lugares e épocas: janis joplin, cazuza, kurt cobain, e, se não tomar cuidado, amy winehouse em breve.

I. disse...

Clap, clap, clap! E o Thiago ultrapassa, definitivamente, a tênue linha que o separava do jornalismo. Parabéns, querido, estou orgulhoso! Espero que esteja melhor!

Grande beijo,

I. :***

Fabiano (LicoSp) disse...

Já fiquei com vontade de ler este livro. Ela era uma grande cantora e com certeza de ter uma grande história de vida para inspirar nossas vidas.

bjs do Lico

Discípulo disse...

Uma crítica muito bem escrita! Mais um texto que revela aquilo que o Thiago possue de mais extraordinário.
;-)

OOM disse...

Ganhei o livro e está aqui na lista de espera, com essa critica vou passar ele a frente dos outros e iniciar a leitura logo! ;)

Na verdade minha curiosidade ficou ainda mais aguçada, pois na faculdade tive aula com um dos produtores de cássia, Mairton Bahia, ele já contava diversas histórias do inicio da artista que pelo jeito estão no livro.

Paulo Roberto Figueiredo Braccini - Bratz disse...

perfeita sua percepção crítica . parabéns amigo . show de postagem ... beijão

Lucas disse...

Mais um texto excelente. Esse "retorno" ao blog está rendendo horrores, hein?
Sério, do caralho a crítica, vou comprar o livro ainda hoje.

E quanto ao comentário do beto...pô, concordo que rola mta pagação de pau para os falecidos, mas qualquer pessoa que realmente ouvia e acompanhava a carreira da Cássia Eller sabe que ela era uma grande artista.

Não se deve endeusar ninguem, mas acho que a morte tem um papel importante no sentido de conhecer mais a personalidade do artista. Todos que vc citou possuíam gênio difícil e marcante.
Como não achar isso interessante?

TONY GOES disse...

Pô, achei que você ia contar as verdadeira circunstâncias da morte dela. Li o post até o fim e nada...

OOM disse...

Oi, não havia visto que o vídeo tinha sido retirado...Peguei novamente o link
http://www.youtube.com/watch?v=80LN0h5x0T4

é verdade, na nota eu ia fzer um comparativo aos dois vídeos que são extamente iguais, mas achei melhor quem ler e assistir tire suas próprias conclusões!!

Alberto Pereira Jr. disse...

parabéns pela resenha Thiago! Eu adoro ler biografias de pessoas que eu admiro ou acho a trajetória interessante. Quando estava conhecendo mais e mais de Cássia, ela morreu.. mas a música dela permanece e sua história, com a biografia se perpetua...

Alexandre Lucas disse...

Instigante a resenha. Acho que nós brasileiros temos de exaltar mais nossos bons artistas e profissionais.

Defeitos e qualidades, todos os temos.