segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Um livro cheio de bons modelos

Com a homossexualidade saindo das sombras e conquistando maior aceitação, é de se esperar que a indústria cultural passe a dar espaço para produtos que nos retratem com menos pudor e mais naturalidade. Estamos assistindo, inclusive, à gestação de dois seriados 100% brasileiros - caRIOcas e Farme 40° - em que os gays passarão de meros coadjuvantes a protagonistas. Mesmo longe de uma inclusão social efetiva, nossa geração sai da toca, consome e se conecta com o mundo, e suas histórias de vida também merecem ser contadas. Um recorte bastante fiel do gay urbano de hoje, que vive a era da internet, do sexo fácil e do culto ao corpo, está em Depois de sábado à noite, romance de estreia do escritor fluminense Kiko Riaze.

Cadu, o protagonista, é um rapaz bonito e inteligente, mas se sente incompleto por não ter um namorado. Em sua busca pelo amor, o mocinho vive uma série de desencontros e fracassos, ao se envolver com tipos variados que ele encontra em suas aventuras pelo Rio de Janeiro (mas que poderiam estar em qualquer lugar). Entre uma tentativa e outra, Cadu se apoia em sua fiel turma de amigos, que o leitor conhecerá melhor ao longo das diversas tramas paralelas que serão desenvolvidas no livro. Do enrustido que vive atormentado (Félix) até a fag hag fervida e devoradora de homens (Michele), passando pelo casal que se vê no impasse de abrir a relação (Laerte e Rubinho), o autor constrói um núcleo de amigos-que-são-uma-família que lembra muito a versão norte-americana do seriado Queer as folk.

Em entrevista concedida à revista Junior poucos meses depois do lançamento, Kiko declarou: "É um mundo praticamente invisível para a sociedade em geral. Quando existe um casal gay na novela, é totalmente estereotipado, eles não têm amigos gays, não fazem programas de gays. Isso precisa ser mostrado". Essa declaração diz muita coisa sobre o livro. Longe de ser uma obra hermética, impenetrável por quem não for do meio, Depois de sábado à noite parece ter sido feita para os héteros lerem e aprenderem sobre o "admirável mundo novo" dos gays. Da descrição dos cenários às gírias faladas por Michele, tudo é apresentado em tom didático, quase professoral, para que até os mais desenturmados consigam saber como as coisas funcionam. Dá para emprestar o livro pros pais tranquilamente - eles não terão dificuldades em aprender o que é uma barbie, por exemplo.

Mas é justamente nas melhores intenções que o livro encontra seu calcanhar de aquiles. O maior problema de Depois de sábado à noite é o excesso de bom-mocismo, que contamina toda a obra. Enquanto os homens que passam pela vida de Cadu (e frustram as expectativas do moço sonhador) são mostrados apenas em seus defeitos, todos os amigos do protagonista são fofos, certinhos, moralmente irrepreensíveis. Entendo que o autor queira construir uma imagem saudável e positiva dos homossexuais, reforçando sua autoestima e destoando dos retratos tradicionalmente angustiados e problemáticos da literatura tradicional, e acho esse esforço louvável. No entanto, na tentativa de passar o máximo de bons exemplos a um público maior, Riaze extrapola na dose do politicamente correto e cria alguns diálogos pouco críveis, transformando os personagens em professores e modelos de conduta. Chama a atenção, sobretudo, o tom exageradamente maniqueísta com que são tratadas questões como o sexo casual e as drogas. Mamãe certamente aprovaria, mas não é assim que a banda toca.

Feitas essas ressalvas, Depois de sábado à noite é um livro agradável e muito bem escrito. O texto hipercorreto de Riaze compromete a oralidade dos diálogos, mas dá conta de descrever as várias passagens de sexo do livro com riqueza e sofisticação, sem descambar para a pornografia. Além disso, os personagens são cativantes (meus prediletos foram o casal Laerte e Rubinho) e as tramas, muito bem amarradas, com desfechos nem sempre previsíveis. Dá para se identificar em vários trechos - e lembrar que a dificuldade de arranjar alguém é a mesma para todos. Agora que Kiko já deu seu bom exemplo à sociedade, vamos ver se no segundo livro (que já está no forno) ele se preocupa menos em ser correto o tempo todo e se solta mais, com personagens menos certinhos e mais humanos. Afinal, nós não precisamos provar nosso valor o tempo todo.

10 comentários:

Daniel Cassus disse...

Eu estive numa sessão de lançamento desse livro aqui no Rio ano passado. Descobri que o meu namorado é amigo do Kiko.

Rafael disse...

Gostei da sua resenha e concordo com a crítica ao maniqueismo, muito frequente nas novelas, pensando em um dos principais produtos de entretenimento de massas.

Se conseguir ler (tá f#*a ler qualquer coisa) te aviso.

Abs

Mogli disse...

Obrigado pela dica...vou atrás.
Com relação ao maniqueísmo, será que as narrativas hétero escapam? (vide qualquer novela).
Mudando de assunto...vc já notou que Rubens virou um nome gay? Primeiro a Cássia Eller, depois apareceu em uma novela...e agora nesse livro...

Túlio disse...

Oi. Pq vc não escreve um romance de temática gay?

Aposto que ficaria ótimo. Vc escreve bem, sabe organizar suas ideias de forma clara e tem bastante conteúdo.

:)

Anônimo disse...

Fiquei curiosíssimo, mas com certeza terei que recorrer à livrarias virtuais para adquirir um exemplar. Acredito que o maniqueísmo é justamente o medo de clichês e caricaturas, pois estigmas nós já temos demais, não é verdade?


Concordo com o Túlio. Se esta vocação lhe for intrínseca, por que não tentar? O blog já é tão bom, acredito que um livro nçao deixaria nada a desejar. Eu sei que vc é bem ocupado, como vc mesmo já revelou aqui...hehehehe

Abraço.

Gurizão disse...

Beleza, vou comprar pra ler!

Don Diego De La Vega disse...

Humm. Acredito que a questão é que a gente fica meio puto quando aparece uma bicha má nas novelas ou em outras manifestações culturais. Da mesma forma que ficamos meio putos com os estereótipos, como se todo gay falasse "olha a faca".

O fato é que quem está de fora do meio tem uma visão negativa em geral dele (os héteros principalmente) e quando aparecem personagens gays maus ou pintosas ficamos com a sensação de que eles olham pra gente pensando "tá vendo? viado é assim mesmo". É cultural, é pesado, é difícil de mudar.

Fora que existe outro tópico muuito mais complicado nesse assunto, que seria extenso demais pra debater aqui: o meio gay é extremamente hipócrita. Dá uma olhada nesse excelente artigo sobre pegação, por exemplo.(vou recomendar lá no blog, tô passando pra vc e seus leitores em primeira mão):

http://loldarian.blogspot.com/2009/06/hypocrisy-of-anonymous-sex-guest.html

Testaremos a teoria agora que na nova minissérie global "Cinquentinha" o Pierre Batelli (que é o protagonista do musical "O Despertar da Primavera", do Müeller e do Botelho, aqui no Rio)fará uma bicha má, como disse o autor Aguinaldo Silva.

Infelizmente já tô vendo que a primeira coisa que vão fazer é mudar o sobrenome do cara pra "baitola".

Thiago Lasco disse...

Túlio e Diógenes: Quem sabe num futuro incerto eu não escreva um livro? mas não é algo que esteja nos meus planos a curto e médio prazo. Mas é bom saber que eu teria pelo menos dois leitores! ;)

Diego: O artigo é realmente excelente, incluindo os comentários. Concordo sim que vale um post, e só não fiz eu mesmo porque precisaria de mais tempo para escrever algo com qualidade. Mas fica a dica para os leitores que estiverem lendo estes comments...

Gilberto Scofield Jr. disse...

Aquele anotando os livros em português para comprar na viagem ao Brasil....vamos conferir. Sobre o livro, vc já tem três leitores. :)

K. disse...

Quero ler. vivo injuriado eternamente com o 3o travesseiro, que tem um dos textos mais mal escritos que já passou pela minha mão... preciso saber que há bons livros basileiros sendo escritos sobre o assunto!