sábado, 11 de agosto de 2007

Fora do gueto, ainda somos quase nada

Nos últimos tempos, eu vinha tendo a impressão de que o Brasil estava, aos poucos, aprendendo a lidar com a homossexualidade - de uma forma mais sadia, menos calcada em preconceitos e mais aberta à compreensão desarmada das diferenças. Quem mora nas grandes capitais está mais propenso a ter essa mesma impressão. Por vários motivos, elas sempre deram mais espaço para os gays serem quem são: uma população maior significa uma fauna humana mais heterogênea e, por conseqüência, mais tolerância com a diversidade; isso sem falar que é bem mais fácil viver sua vida no meio de uma multidão do que em uma cidade pequena onde todos se conhecem e cuidam da vida uns dos outros.

Outras duas coisas que me deixavam bastante otimista eram o avanço das paradas gays e a multiplicação das opções de entretenimento para esse público. Em São Paulo, a parada deste ano reuniu 3,5 milhões de pessoas e mesmo em cidades bem menores o movimento só faz crescer - em Porto Velho (RO), por exemplo, 40 mil pessoas foram às ruas no último dia 22. Enquanto isso, o mercado gay anda cada vez mais próspero. Boates novas abrem em São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Brasília. Construtoras fazem lançamentos imobiliários com campanhas dirigidas aos casais homo. Novas revistas gays pipocam por aí e até a Editora Abril está desenvolvendo a sua (a Romeu).

Se fatos como esses fazem parecer que estamos, enfim, conquistando o nosso espaço, o episódio envolvendo o jogador de futebol Richarlyson, do São Paulo, nos faz cair na real e mostra que ainda há muita coisa a ser feita. Para quem não está a par da polêmica, uma rápida explicação. Há algum tempo atrás, o jornal Agora São Paulo noticiou que um jogador de futebol estaria negociando com o programa de TV Fantástico, para revelar no ar a sua homossexualidade. Em junho, durante o programa Debate Bola, da TV Record, o diretor administrativo do Palmeiras, José Cyrillo Jr., foi questionado se o tal jogador gay era do Palmeiras, e respondeu: “O Richarlyson quase foi do Palmeiras”. Richarlyson, que afirma ser hétero, entrou com uma queixa-crime contra Cyrillo. Mas o juiz não a recebeu.

A queixa-crime do jogador partiu do princípio de que a homossexualidade denigre as pessoas. Claro que tal premissa é equivocada, mas engana-se quem pensa que foi por essa razão que a queixa foi rejeitada. Na verdade, o juiz negou seguimento à ação penal de Richarlyson porque consegue ser ainda mais preconceituoso do que ele. O que se vê na sentença é um festival de barbaridades homofóbicas que beiram a ignorância e são inadmissíveis para um profissional de tanta responsabilidade como o juiz criminal - a quem o Estado confere o poder de selar o destino de tantas pessoas.

Para justificar a rejeição da queixa-crime, o juiz, Manoel Maximiano Junqueira Filho, da 9ª Vara Criminal, afirma: "Futebol é jogo viril, varonil, não homossexual. Esta situação incomum do mundo moderno precisa ser rebatida (!). Quem se recorda da Copa do Mundo de 1970 jamais conceberia um ídolo seu homossexual. Quem presenciou grandes orquestras futebolísticas formadas não poderia sonhar em vivenciar um homossexual jogando futebol". Eu poderia falar aqui de vários homens gays que são uma fortaleza de virilidade, que se destacaram nos esportes, mas nem vou me dar ao trabalho. Quem lê este blog não precisa disso.

Em seguida, o juiz tenta mostrar que não tem preconceitos e só piora a situação. "Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas forme o seu time e inicie uma Federação. Agende jogos com quem prefira pelejar contra si. (...) Também o negro, se homossexual, deve evitar fazer parte de equipes futebolísticas de héteros". Ou seja, a completa negação da inserção social: os gays não são dignos de ocupar o mesmo espaço do que os héteros, devem ser segregados em seus guetos - se querem jogar futebol, que criem uma liga cor-de-rosa. De preferência, com uniformes com brilho e paetês, meias de lurex, cheerleaders transformistas e a Elke Maravilha cantando o hino.

O magistrado se apóia em toda sorte de conceitos distorcidos sobre a homossexualidade: que é uma doença, que é um mal contagioso, que ameaça a educação das crianças. "O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal (?)... Para não se falar no desconforto do torcedor, que pretende ir ao estádio, por vezes com seu filho, avistar o time do coração se projetando na competição, ao invés de perder-se em análises de comportamento deste ou daquele atleta, com evidente problema de personalidade ou existencial (!!!); desconforto também dos colegas de equipe, do treinador, da comissão técnica e da direção do clube.". E conclui citando uma "estrofe popular" que diz, em suma, "cada macaco no seu galho".

A chocante sentença teve uma repercussão enorme. Entidades de direitos humanos protocolaram representações na Corregedoria do Tribunal de Justiça, que abriu sindicância interna para apurar a responsabilidade do Dr. Junqueira, já desligado do processo de Richarlyson. No final do longo procedimento, ele pode levar uma simples censura ou advertência ou até mesmo ser exonerado do cargo (pouco provável). De qualquer forma, a punição desse juiz é necessária. A sentença fere vários dispositivos legais, desde uma simples lei estadual anti-discriminação até a Constituição Federal, que consagra valores como a igualdade e a dignidade humana. Além disso, se puni-lo é dar um recado exemplar de que ninguém pode ficar impune pela homofobia (nem mesmo os juízes), não puni-lo é legitimar uma segregação que abre um precedente perigoso para vários outros tipos de discriminação. É preciso mostrar à sociedade que o raciocínio reacionário do Dr. Junqueira está muito, muito equivocado.

Enquanto alguns gays têm a infelicidade de ter seus direitos mais essenciais negados por pessoas como o Dr. Junqueira e outros tantos são brutalmente agredidos (como o rapaz que foi queimado vivo em Belo Horizonte na última segunda-feira), a maioria se refugia em suas redomas de irrealidade e jura que está tudo bem. A vida pode parecer bela quando se tem o corpo sarado, o jeans da moda e os aditivos suficientes para uma boa noite de festa, mas contentar-se em ser feliz dentro dos muros da The Week é muito pouco. Muitos gays torcem o nariz quando o assunto é militância ("coisa de ativista chato"), mas a verdade é que, enquanto estivermos preocupados apenas com nossos luxinhos consumistas, as portas continuarão sendo fechadas para nós.

8 comentários:

Gui disse...

Essa segregação proposta pelo Juiz me fez lembrar o racismo que existia no futebol há 100 anos. O Fluminense era conhecido como pó-de-arroz, pois seus jogadores negros tinham que se maquiar para poder entrar em campo - naquela época, o time era de "brancos". Se negros quisessem jogar futebol, que formassem o proprio time. Discurso parecido, não?

Apesar de nao ser ativista e nao ser assumido em alguns lugares da minha vida, tentei fazer a minha parte quando, a 10 metros de mim, um casal apanhou de um grupo de pitboys na Farme no carnaval do ano passado.

Nessas horas, só resta indignação e um pouco de esperança de não precisarmos de outros 100 anos...

Ah, esse, sem duvida, foi o melhor texto sobre o assunto que eu li.

Alexandre Lucas disse...

O caminho a ser trilhado ainda é longo...

Anônimo disse...

Texto maravilhoso. Soube da posição do juiz por esses dias, mas juro que me pareceu tão surreal que nem acreditei que alguém pudesse se manifestar de forma tão burra, ainda mais um juiz. A sociedade está bem mais tolerante sim, isso sem dúvida. Só não podemos nos contentar com uma liberdade relativa nas ruas de Ipanema ou nos Jardins. Nosso mundinho "Daslu" não é referência. Parabéns pela redação!

al•BE•r•TO disse...

O Brasil aprendeu direitinho a lidar com a homossexualidade: de maneira econômica! Gay legal só se tiver grana no bolso!

...as Paradas Gays e todas as suas ilusões...

Anônimo disse...

Oi, desculpa mudar de assunto, mas é que vi um coment seu no blog do carioca virtual. Vc disse que a segurança só pega pesado em dias de festas especiais.
No entanto, o que se tem visto em uma famosa boate é o contrário. Em dias normais pega-se pesadíssimo e em festas especiais faz-se vista grossa.
Concordo com o carioca. A nova casa no rio quer fazer a fama e deixar tudo liberado pra agradar no começo.

Anônimo disse...

Eu acho que nunca tinha lido uma sentença tão absurdo quanto essa. E olha que já li muitas horrorosas...

Além do teor nitidamente inacreditável, a sentença não julga nada do que foi levado à apreciação do Estado-juiz. Esse infeliz desse juiz simplesmente opta por tecer comentários sobre assuntos que alheios ao mérito da queixa-crime, como se fosse essa a função dele. Isso foi o que mais me impressionou.

O lado positivo foi a reação negativa a esse episódio. Li vários depoimentos de juristas importantes e conhecidos, condenando a postura do tal juiz.

TONY GOES disse...

O lado bom dessa história toda é justamente a reação considerável que a sentença provocou. Homófobos como o meritíssimo e aquele pastor que ofendeu os gays na TV são burríssimos, porque se esquecem que nós não caímos de Marte. Gays têm família, mãe, pai, amigos, e graças a Deus eles estão cada vez mais do nosso lado. Então, quando alguém mexe conosco, também está mexendo com o nosso entorno. Sei que o caminho pela frente ainda é longuíssimo, e que no Brasil praticamente não existem leis que nos protejam. Mas alguns outros juízes, estes sim iluminados, já vem fazendo jurisprudência em casos de testamentos e pensões, e a maioria dopovão vem pouco a pouco apoiando a causa. Não existe família sem gay!

Unknown disse...

Otimo post... eu estava completamente por fora disso tudo e fiquei chocado com a notícia.... esse juiz merecia sim ser exonerado ... e mais foda do que saber que isso nao acontecerá é saber que logo mais ninguem se lembrará mais ddessa noticia.... como nao ser pessimista com o futuro de um país onde mesmos os juizes parecem desconhecer itens básicos de direitos humanos?....