sábado, 16 de maio de 2009

Chorando sobre o Milk derramado

Um dos últimos filmes a que assisti antes desse recolhimento foi Milk, de Gus Van Sant, aquele em que Sean Penn reencarna o político e ativista gay Harvey Milk. Muito legal que a nossa geração tenha a chance de conhecer a história real de um líder que ousou remar contra a maré, quebrou paradigmas e enfrentou a mentalidade tacanha da sociedade americana dos anos 70 (não muito diferente da atual, como mostra a trágica Proposition 8). Segundo a última gerente de campanha de Harvey, Anne Kronenberg, "ele imaginou um mundo virtuoso dentro de sua cabeça e, em seguida, agiu para criá-lo de verdade, para todos nós". É um daqueles filmes que apertam uma tecla dentro de nós. E tem ainda o James Franco, que conseguiu ficar lindo de bigode, proeza que 80% dos mudernos de São Paulo jamais vai alcançar.

Ao mesmo tempo em que deixei o cinema tocado e inspirado, uma pergunta não saía da minha cabeça: onde foi que nós perdemos o bonde? Nos dias de hoje, a história de Harvey Milk soa romântica, quase utópica. Se vivesse no Brasil, ele seria tido como um sonhador excêntrico. O que aconteceu? Terá sido a repressão do regime militar, que promoveu o gradual esvaziamento do debate público e do engajamento político? Terá sido o bombardeio das mídias, que nos prostrou como idiotas na frente da TV e do computador, enquanto a vida passa lá fora? Estamos desconectados de tudo o que não diga respeito ao nosso emprego, ao nosso corpo, ao nosso umbigo. Nestes tempos tão individualistas, com cada um tentando puxar a brasa para a sua sardinha, quantos de nós teriam a disposição de se sacrificar, de fazer sua parte por um mundo menos homofóbico, como o ativista Milk?

Pelo visto, muito poucos. Nem para atitudes mínimas temos braços e pernas. A campanha Não Homofobia, abaixo-assinado virtual para a aprovação do Projeto de Lei 122, que criminaliza manifestações de homofobia, conseguiu míseras 40 mil assinaturas. How come?! É tão fácil, não tem que pegar fila nem tomar chuva, basta clicar e pedir para os conhecidos espalharem! Se não engrossarmos o coro, a ignorância evangélica sempre falará mais alto e selará nosso destino (e nossos projetos jamais serão aprovados). O governo federal acaba de aprovar o Plano Nacional de Promoção da Cidadania LGBT, com 51 diretrizes importantíssimas da nossa agenda, desde combate à discriminação no trabalho até reconhecimento da união homoafetiva para fins sucessórios e previdenciários. Você teve a curiosidade de ir atrás e saber algo a respeito? O certo seria acompanharmos os acontecimentos políticos em geral, que afetam o destino de todos os brasileiros, mas nem quando a discussão "é com a gente" nós conseguimos nos interessar.

Será que um futuro mais digno nos aguarda? Será que um dia vamos olhar para trás, e estes tempos de trevas que nos oprimem serão um passado tão irreal e absurdo quanto a perseguição aos judeus, o "endireitamento" das crianças canhotas ou o tabu em torno das mulheres divorciadas? A mentalidade brasileira vai mesmo evoluir, as pessoas que patrulham a existência alheia vão aprender a cuidar da própria vida, a orientação sexual de cada um vai deixar de ser um entrave ao exercício da cidadania plena? As novas gerações serão, de fato, mais tolerantes à diversidade? Linchar gays no meio da rua será considerado algo tão medieval como queimar cientistas na fogueira?

Talvez. Pode ser que sim. Mas para isso é preciso um breakthrough, um choque de mentalidade que precipite essa evolução que hoje acontece preguiçosa, em passo de formiguinha. E eu não vejo de onde pode partir esse choque, pelo menos não entre nós, que deveríamos ser os principais interessados. Mais uma Parada do Orgulho LGBT está chegando, ganharemos visibilidade internacional por preciosos instantes e, de Salvador a Porto Alegre, tudo o que preocupa as participativas bilus é saber a programação das festas e ficar com o corpinho em dia para não fazer feio na pista.

21 comentários:

Daniel Cassus disse...

Quer a resposta? Simples: a gente se acomodou nas pequenas vitórias que o dinheiro conseguiu comprar. Enquanto consumidores, somos iguais aos héteros. Nada mais além disso.

Isadora disse...

Acho que a mudança vem assim mesmo, Thiago, em ritmo de formiguinha. Mas esse é o ritmo das grandes transformações culturais.

Aos poucos, as coisas têm mudado muito, a gente tem que pesar isso também. Ao mesmo tempo em que vemos preconceito por todo o lado, também assistimos a alguns avanços no âmbito dos direitos. Veja, inclusive, sobre o plano nacional que você mencionou, política para LGBT há até um tempo atrás era apenas no âmbito da saúde e olhe lá. Hoje já se fala em direitos e cidadania. Claro, tudo mais lento do que gostaríamos, mas já é alguma coisa.

Quanto à mobilização das pessoas... essa sempre a desejar.

BHY disse...

Obrigado, Thiago, pelo bom texto e pelo engajamento. A gente vai chegar lá. ;-)

Discípulo disse...

Não, Daniel! Se o dinheiro realmente nos igualasse seria o paraíso! Não iguala, só anestesia e ilude. Thi: que texto leve e preciso! Parabéns!

kaco_poa disse...

Que bom te ver retomando seu blog, e com um texto desse quilate!
grande abraço

S.A.M disse...

a gente se acomodou nas pequenas vitórias que o dinheiro conseguiu comprar. Enquanto consumidores, somos iguais aos héteros. Nada mais além disso. [2]


Milagrosamente o governo federal tem feito mais ações corajosas neste aspecto que nós mesmos,triste ver essa paralisia que dimina os gays em relação a politica e direitos.

Gilberto Scofield Jr. disse...

Sensacional. Belo texto. Perturbadoramente real reflexão de tudo o que vivem os gays brasileiros diante de esforços aparentemente simples como se agrupar e agir. Eu tb não vejo de onde vem o choque. E se blogs e jornais e programas e revistas e nada acende a chama, bem, então é tudo muito triste. Muito triste.

Marcos disse...

A falta de mobilização, o excesso de individualismo e a futilidade são motivo de vergonha, e não de orgulho gay, infelizmente. Uma péssima imagem pra passar pro resto da sociedade.

Daniel Cassus disse...

@uomini: como eu falei, é uma acomodação e somente enquanto consumidores. Por isso, não é tão diferente de uma ilusão, como você colocou.

João disse...

Muito bem, moço! É bem legal vocês intensificarem a crítica (e a auto-crítica) nos blogs. Avante!

Sprite disse...

Reforçando o que o Daniel e o Uomini comentaram, mas de outra forma:
Com dinheiro compra-se conforto. O que eu vejo da juventude LGBT é que ninguém quer ser nada, todos só querem comprar. Comprar um gueto para se esconderem e fingirem que está tudo bem do lado de fora, que estão bem dentro de quatro paredes e um jeans de luxo, que não há homofobia e que o mundo não é injusto, além da ilusão de que todos têm ou terão grande poder aquisitivo de forma fácil só para fazer carão.
Chamem-me de pessimista e exagerado, mas eu considero que a minha geração estará morta ou mais calada ainda nos próximos 10 anos.
É claro que meu círculo social é um pouco afastado da capital, mas por muito tempo minha cidade foi considerada uma cidade de "viado" nos comentários jocosos homofóbicos, não saio na rua sem ver pelo menos uns três gays e todos os shoppings parecem ter uma obrigação social de contratar um LGBT por loja, mas a única militância por aqui é para ofertas de grifes ou conseguir um VIP.

poor guy fashion victim disse...

Bom texto.

poor guy fashion victim disse...

E nem a propósito. Ontem foi o dia internacional contra a homofobia e que foi estabelecido ser 17 de maio, porque foi a data em que a OMS - Organização Mundia de Saúde retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças

tommie carioca disse...

A impressão que fica é que a rejeição a gays tem como uma das bases o medo que muitos heteros tem de que iremos abalar o status quo, o mundo perfeito - aquele da bíblia que reconhece amor como algo somente entre homem e mulher. E há também - de uma forma mais obscura e menos declarada/assumida - o receio de que a masculinidade (em sua forma mais primária, o machismo) perca mais espaço ainda, pois o feminismo das últimas décadas já abalou bastante. E esse "machismo" se pode perceber entre gays, disfarçado na predileção ´não curto afeminados´ e no muro invisível entre os que dão pinta e os que (acham que) não dão. Talvez enquanto os gays não souberem se orgulhar uns dos outros, os heteros também não o farão.

Fabiano (LicoSp) disse...

Deviam obrigar o povo que vai na parada gay a assinar. Quer participar?!? Assina.

O povo infelizmente só quer farra. Fala que é necessário ligar senão vão acabar com o carnaval... vai ter congestionamento.

Infelizmente muitas vezes tenho pena do povo brasileiro não pelas injustiças, mas pela sua incapacidade de progredir.

bjs do Lico

Anônimo disse...

Eu meti a cara e escrevi um post sobre o plano do Governo no meu blog. Concordo que ele pode ser um incentivo, mas poucos, realmente, estão se lixando para o ativismo. Acreditam que é "queimação", pra dizer o mínimo. Adorei Milk e acho que ele poderia servir de exemplo, mas quem seguirá? Tá aí o abaixo-assinado pra comprovar. Enquanto não berrarmos, ninguém vai ouvir nossas vozes. Nem mesmo num único dia, como o da Parada.

Thiago,(com o perdão do palavrão) vc é foda! Ótimo post.

K. disse...

Tive a mesma reação ao ver Milk... fquei me perguntando mil coisas sobre essa passividade, essa morosidade... O fato é que somos naturalmente preguiçosos, não vamos atrás da informação... e ela não interessa à grande mídia sempre. A internet, que deveria agilizar a informação, dissolve e faz com que ela perca seu sentido...

E claro, a futilidade está mais forte do que nunca numa era de escapismo.

André Mans disse...

o que aconteceu com os gays é a mesma coisa que aconteceu com todos os parametros da vida. o individualismo e acima de tudo, medo e preguiça. o conformismo sai mais barato e evite grandes problemas. não há uma conquista coletiva em andamento, o chique de hoje é 'foda-se vc'. posso até estar pegando pesado e generalizando, mas será que alguém duvida do que estou dizendo??


bjo pra vc

Alberto Pereira Jr. disse...

Realmente nao vejo de onde um "choque" poderia vir.. ao mesmo tempo em que estamos mais conectados a tudo, por conta da tecnologia, estamos isolados em bolhas, estigmas e castas (sociais, culturais, raciais, ideológicas e sexuais). Nao sei onde perdemos o fio da meada, mas ele se rompeu há muito tempo e nao será nessa Parada, infelizmente, que ele vai se atar. Vamos à Paulista, bonitas e belas, mas usaremos a exposiçao e o momento nao para cobrar atitudes, mas para o prazer.

O filme Milk tb me tocou bastante. Tanto pelo lado artistico --Gus Van Sant realizou uma ótima película--, qto por seu tema.

Thiago, dei uma lida rápida no blog. Nao sei o que lhe aflige, mas que fique bom rápido viu?

beijos de Buenos Aires

ps: o James Franco além de lindo está muito bem no papel. Surpreende-me!!

márcio maracajá disse...

Acabei de descobri seu blog e estou surpreso com conteúdo, simplicidade e bom gosto. Li vários posts e li tb alguns antigos. O que fala de Recife é muito bom, tb muito divertido e não menos verdadeiro. sou de lá e moro cá em SP. Dei boas risadas.

*feliz de saber que nem só de rola vive os "blogs ditos p/ gays". parabéns.

Anônimo disse...

Tô adorando ler seus posts. Eu sempre fui considerano "negativo" por ter visão crítica.

Não é questão de ser negativo; Pelo contrário! É perceber que o que não está excelente, ainda DEVE ser melhorado.

Acontece que é mais fácil sublimar a "vidinha" e "comprar um pacote Sorriso".

Alienado, mas não como qualquer um: um alienado que se esforça para acreditar na alienação e torcendo, pra que um dia vida e fantasia troquem de lugar.

Bora, se interessar e trabalhar, galera!