Eu estava vibrando com a vitória dos nossos vizinhos argentinos [eu me refiro à aprovação da emenda do casamento gay pelo Senado argentino, de que tratei aqui, e que foi inclusive o assunto mais discutido do encontro de blogueiros do último sábado]. Mas a euforia durou pouco. Ontem, um post no blog do Don Diego interrompeu meu devaneio otimista e lembrou que em nosso país o buraco da vida real é bem mais embaixo. Ele expôs o drama do jornalista d'O Globo Jefferson Lessa - que relatou, num desabafo na edição de ontem do periódico carioca, que vem sendo vítima de bullying homofóbico quase diário nas imediações da sua casa, no idílico bairro da Urca. O texto é tão comovente quanto desconcertante: Lessa, já quase um balzaquiano, se sente completamente desamparado, e não enxerga nem mesmo na polícia a possibilidade de uma resposta satisfatória à sua aflição. É muito triste.
Na medida em que a história está repercutindo na internet e provocando reações de solidariedade, surgem mais e mais histórias parecidas. Tanto os autores dos blogs como os visitantes que deixam comentários vão expondo experiências pessoais no mesmo sentido, e com isso percebemos que essas histórias estão longe de ser isoladas. Todos nós sofremos algum tipo de bullying, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos violenta, em pelo menos alguns ambientes que freqüentamos, em pelo menos algumas fases da vida. Ainda que com o tempo, mais resolvidos quanto à própria identidade e cansados de remar contra a maré, nós optemos por viver nossas vidas em uma bolha de conforto, na companhia de pessoas mais arejadas e civilizadas, e sejamos felizes assim, o mundo segue cruel - e a mentalidade dominante evolui a conta-gotas.
Sim, eu também sofri bullying na escola. Cresci sendo o pária da turma, aquele que passava o recreio isolado, para quem ninguém estendia a mão. Mas meu caso não foi de "bullying homofóbico", simplesmente porque, durante meus onze anos de colégio, não havia em mim nenhum traço, embrionário que fosse, de homossexualidade - ou de qualquer outra sexualidade. Eu era uma c-r-i-a-n-ç-a, mesmo. O típico menino ingênuo, puro, que não conseguia acompanhar a malícia dos coleguinhas, que vivia em seu mundo interior e só mais tarde começou a entender como as coisas eram fora dele. Mas que poderia muito bem ter crescido, perdido a timidez e até se casado com a gostosa da classe. Só fui acordar para a vida e trocar a esfiha pelo kibe mais tarde, já na faculdade.
Eu tinha, sim, algumas características que pesavam contra mim e que formavam um verdadeiro "kit impopularidade". Eu aprendi a ler e escrever sozinho, aos quatro anos, e também desenhava muito bem. Ser precoce tornou as coisas muito mais fáceis para mim durante as aulas (escreva com 'ss' ou 'ç'?! ah, por favor, né?) e muito mais difíceis nos intervalos, porque me fazia diferente dos demais e despertava o ódio e a inveja dos colegas ('isibido!', gostavam de rabiscar por cima dos meus desenhos feitos com tanto capricho). Com tanta hostilidade, eu não tinha nenhum estímulo para sair da minha redoma solitária, do meu mundo introspectivo de desenhos, redações e livros, e me misturar aos demais. Nem na hora das brincadeiras e esportes - demonstrações de força, coordenação motora e destreza física que sempre foram um estorvo pra mim. Para piorar, eu usava óculos, em uma idade em que isso era simplesmente inaceitável. Cresci com o carimbo de CDF e de cara mais uncool da turma.
Além do "kit impopularidade", outra característica que selou minha sorte na infância foi a dificuldade que sempre tive para me impor e, especialmente, colocar minha agressividade para fora. Isso é uma questão de sensibilidade, de temperamento mesmo; tudo bem que gays costumam ser mais sensíveis, mas acho que reduzir isso a uma homossexualidade latente seria de um simplismo extremo e absurdo. Sempre fui o tipo de cara pacífico, que precisa acumular muitas provocações até perder a paciência e explodir: isso é parte da minha índole, as pessoas que convivem comigo logo percebem, e algumas inclusive tentam se aproveitar disso. Foi de uns anos para cá que comecei a me educar para reagir mais, enfrentar mais, comprando até algumas brigas que poderia deixar de comprar, pelo simples exercício de não levar desaforo para casa. Há momentos em que é preciso exigir respeito e se impor - e isso também transcende a questão da sexualidade.
Mas há casos em que se impor é bem mais difícil - em especial quando o bullying adquire contornos de pura covardia, como na história de Jefferson Lessa, acuado por um grupo de delinquentes juvenis de classe média. Em nosso íntimo, achamos que seria bárbaro se Jefferson tirasse de dentro de si uma força improvável, se baixasse nele uma mistura de Jackie Chan com Lu Patinadora, e ele desse uma voadora poderosa no meio da fuça de um dos playboys do mal, e quebrasse o nariz do maldito em quatro pedaços, assim como todos os dentes da frente, para total choque dos demais, que perderiam a pose e sairiam correndo na mesma hora para nunca mais atacá-lo. Mas violência não se resolve com mais violência. Enquanto não vem de dentro da sociedade a tão esperada mudança de mentalidade, a tutela do Estado é fundamental para ajudar a garantir a ordem e proteger a integridade dos cidadãos.
E é aí, finalmente, que entra a questão da sexualidade. Nesse momento, a homofobia nos castiga duplamente. Primeiro: ela já nos torna alvos privilegiados do bullying, e aumenta, por si só, as chances de sermos constrangidos e até exterminados, como aconteceu recentemente com o garoto de São Gonçalo (RJ), assassinado por uma gangue pelo simples fato de parecer gay. E segundo: enquanto na escola a equipe pedagógica tem a possibilidade de interceder em favor do aluno molestado, a vítima do bullying homofóbico muitas vezes não tem a pedir proteção, porque as polícias são totalmente despreparadas para lidar com a diversidade sexual, isso quando elas mesmas não engrossam o coro do preconceito. Somos tão alijados de cidadania que até o socorro do Poder Público numa situação extrema nos é negado.
O desespero de Jefferson Lessa é totalmente compreensível. Mas se entregar não é a solução, muito menos abandonar o bairro, como ele chegou a falar em seu texto. Expor o problema, tirá-lo da invisibilidade, é um primeiro e importantíssimo passo. A mesma solidariedade que nós estamos tendo, mesmo sem conhecê-lo, ele poderá encontrar em outras pessoas, que se tornarão suas aliadas. É preciso botar a boca no trombone contra esse absurdo. Por mais capenga que seja a via policial, as autoridades terão que se deparar com o assunto e aprender a lidar com ele. Tem que fazer B.O. sim, até pedir proteção se for o caso. Não dá para engolir a seco e ficar enfrentando a barra sozinho. O bullying traz em sua raiz um desequilíbrio, e só somando forças para reverter esse desequilíbrio é possível dar fim ao pesadelo.
segunda-feira, 19 de julho de 2010
O alvo preferido
Postado por Thiago Lasco às 11:29 PM
Marcadores: brasil, comportamento, gay, introspective, sociedade
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22 comentários:
Querido, parabéns pelo texto! É o contraponto (indesejado, mas verdadeiro) à euforia trazida pela nova lei no país vizinho. Beijão.
Excelente texto! Me identifiquei muito pois foi exatamente o que aconteceu comigo. Até a parte de trocar a esfiha pelo quibe só na faculdade. Crianças podem ser cruéis, mas isso é só um reflexo da falta de educação que já vem de casa. Eu também sofri da mesma maneira.
Para piorar, meus pais nunca me falaram "bate de volta". Pelo contrário, nunca fui estimulado a me defender dessa maneira. Acho que isso só piorou as coisas. Todas as histórias de bullying que eu conheço que terminaram com alguma forma de revide violento, acabaram bem para o molestado. Todas tiveram esse desfecho: "e nunca mais me incomodou".
Agora, um detalhe que você nem deve ter percebido, mas "somando forças" é o slogan do governo do estado do RJ. Você, inconscientemente, está fazendo propaganda pela reeleição do Sérgio Cabral. :P (aquele que vê propaganda eleitoral em tudo)
O pior de tudo são os traumas, as marcas que ficam em nossa personalidade, que passamos anos e anos tentando mudar.
Abraço Thi!
É realmente muito triste tudo isso. Eu sofri quando estava me tornando um adolescente. Era chamado de 24, bichinha e a coisa só parou quando apareceu outro gay mais efeminado que eu. Depois, entrei para os times de Handball e Voleyball da escola e meio que me tronei "popular". As pessoas já não me xingavam, queriam ser minhas amigas. Mas nada apagou o que me fizeram antes disso. É tudo muito triste!
Pois é... eu também acabei definhando aos poucos...
Eu já não era um jovem pacífico... sofria muito bullying no ensino médio, por ser o capial que vinha da caixa prego estudar na escola de playboy. Ai que a gente para e pensa em como as pessoas adoram encontrar motivos idiotas para justificar covardias.
Todo dia tinha pancadaria. Todo dia eu mandava um dos palhaços pra casa com dentes a menos. Mas cada vez mais tinham mais deles. E a coisa foi ficando mais séria. Ainda bem que o terceiro ano acabou, porque naquele ritmo eu ia acabar sendo morto qualquer hora.
Mas ai eu penso: e se um dia qualquer, um deles resolvesse aparecer armado? E se hoje, eu sair no tapa quando alguém resolver tirar uma comigo, e levar um tiro na fuça? Vale a pena?
Por isso sou a favor de jogar a responsabilidade em cima das autoridades. Violência, só em ultimo caso.
Bullying é coisa antiga, mas parece que agora as pessoas estão tratando o problema com a seriedade que ele merece, então começa a cair aquela ideia de que é "coisa de criança".
Seu texto e o do Jefferson estão ótimos, tratam a questão sem firulas., não há muito o que acrescentar.
Aproveito pra indicar o artigo do Alexandre Vidal Porto que foi publicado ontem na Folha. Vale a pena. Abraço,
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1907201007.htm
Que beleza, está postando quase todo dia! Assunto é o que não falta, hein?
Bondade sua dizer que o Jefferson Lessa é "quase balzaquiano". O próprio cara se diz "no auge da meia idade", ou seja, já deve ter passado dos 40. E balzaquianos somos todos os que já passaram dos 30, você "excrusive", kkkkkk.
Na escola também era considerado o CDF da turma e ainda não tinha me tocado da porção gay mas ao invés de ficar excluido acabava compensando esta diferença passando cola e ajudando os mais cools e desta forma sendo aceito e até protegido pela turma. Afinal era uma troca de interesses mas pena que ainda não tinha tinha conecido a possibilidade do troca troca que seria muito mais prazeiroso.
Urca é um bairro de militares com alma militar, uma pequena fortaleza do povo saudosista, ser macho la' nao é uma opçao: esses playboys devem respirar ar de preconceito todo dia entre as paredes de casa e depois descarregam a rigidez psicologica do dia a dia nos coitados "diferentes" em que eles esbarram na rua.
Todos os gays na escola tiveram que enfrentar esse tipo de tratamento (verdade que alguns carregam feridas e ate' foram mortos), mas as vezes eu acho que, fora a violencia, o desaforo por mais desagradavel que tenha sido, esses mau-tratos nos fizeram pessoas melhores..a pele mais espessa...
Se fosse em outro bairro, diríamos menos, mas porra na Urca?
Cara, é uma pena...
Parabens pelo texto!
Thiago:
Parabéns pelo texto em apoio ao Lessa.
Como enfatiza a campanha do programa Altas Horas, do Serginho Groisman, contra o bullying, só abrindo a boca e denunciando q essa prática covarde diminui e até desaparece.
bjs
Maurício
É que eu sempre repito: em nossas bandas, casamento gay (ou como prefiram chamar) é FIRULA. No Brasil, o que importa é transformar a homofobia em crime e ponto. As bilus que se contentem em não arrancar mesada de ex-maridón endinheirado.
Evite o bullying: na Urca, use burca. Pelo menos de terrorista aquela gente deve ter medo.
Sempre tem um contraponto por aqui, né???? Adooro muito!!! Hugz!!!
Ótimo! E a solução é esta mesmo, tornar público, denunciar às autoridades, cada caso singular, todo episódio.. manter na visibilidade é permitir que coisas assim contimuem acontecendo. Abç!
oi,
leio seu blog faz um tempinho, mas te digo: não acho que fazer BO vai ajudar em nada e, mesmo correndo o risco de parecer politicamente incorreto, acho que ele deveria juntar uma grana, dar na mão de uns moloqueiros, que resolveriam a questão no tapa mesmo. Infelizmente, essa gente só aprende assim. Triste, né? Mas onde vivemos É A REALIDADE.
Aliás, postei isso no meu blog novato.
Abs
babe, quase fui ao choro pois sua descrição do período da escola, com poucos retoques, poderia ser a minha.
sempre fui pária, nenhum jeito para esportes, gostava do que os outros não gostavam e nem coloco o sexo aqui pois na época era ainda uma interrogação para mim.
odiava educação física pois só entrava nas atividades quando o professor obrigava pois ninguém queria o 'looser' na equipe ou time.
mas, na hora de provas ou tirar dúvidas eu servia bem. também não me impunha e me isolava mais e mais me cercando de outros loosers que padeciam como eu.
crianças são ainda mais cruéis que adultos e acho que até hoje, parte de minhas inseguranças vem de lá.
quanto a homofobia, sim, ainda temos muito pra fazer ainda mais hoje que foi aprovada lei contra preconceito racial em promoções seja em empresas publicas ou privadas.
agora, se for viado, pode negar que ninguém vai notar mesmo...
Caramba, como muitos, também me vi um pouco na sua descrição dos tempos de escola. Sempre fui impopular, péssimo em qualquer modalidade esportiva, considerado o CDF e a minha ficha tb só caiu na época da faculdade (lá pelos 19 anos...). Todas essas coisas moldaram demais a minha personalidade e a minha forma de lidar com as pessoas. Tenho melhorado de forma considerável, mas durante muito tempo fiquei preso na minha bolha nem sempre colorida. Abs
Já leu a Ronda Paulista by
Scofield? Vale MUITO a pena. Fica-se sem palavras...
Há uma inversão no ambiente escolar que muitas pessoas estão notando: o bullying perdeu força contra os "gays" e fortaleceu-se contra as minorias que não estão com o status de "cool" do momento.
Agora... curioso - o fato de estar entre os primeiros da sala, na minha escola, era passe livre. As pessoas até poderiam falar mal e soltar comentários maldosos, mas era quase uma heresia. Talvez porque fosse um ambiente em que a inteligência e cultura ditassem a hierarquia.
Pena que também o mund(inh)o gay é feito por b pintosas que so' gostam de homens que nao dao pinta.Elas sempre chamam outros gays de todo que é apelido. Pior os critérios para selecionar esses "bofes" machos sao os mesmos que os pitbulls de Urca usam de forma inversa para "selecionar" as vitimas que fogem ao padrao deles. Serà que nem gay gosta de gay, pq despois implicar com os heteros?
Texto muito sincero e constatador. O Bullying (seja qual ele for) sofrido por alguém, demonstra a capacidade humana em ficar transtornada de tal forma com o diferente, não-usual ou que é pertubador aos olhos de quem vê e não só observa. Sim, quem pratic ao bullying, observa, absorve e sente emoções que com certeza o pertubam e o fazem pirar dentro de seus conceitos absurdos ou inócuos. Não sei se sofrer bullying, poderia ser sinal de que se tem opinião ou que se tem personalidade, mas a grosso modo, nos remete até a questões psico-sociais mal resolvidas pelo bullyzador (talvez seja o termo mais adequado rsrs ), o qual sofre ao ver no outro a si mesmo. Não estou falando de sexualidade especificamente, nem falando de rapazes presos no armário. Mas digo em se ver no outro, como a forma de um grito, ver o outro diferente é gritar para si e não para o mundo. O que resta é gritar àquele indivíduo, insultos absurdos. Quando na verdade se quer é gritar ao mundo algo, que nem mesmo um palavrão pode ser capaz de expressar.
Vamos ser felizes, superar os bullyings e tentar vivermos em paz. Mente sã, corpo são.
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