Uma das bandeiras mais importantes carregadas pelo movimento homossexual no Brasil é o que a mídia chama, com muita impropriedade, de "casamento gay". Impropriedade porque isso dá a falsa impressão de que o que os gays querem é subverter um ritual da Igreja Católica (o casamento), o que significaria uma profusão de noivos barbados entrando de véu e grinalda pelas portas de igrejas mundo afora, go-go boys cobertos de óleo marchando sobre o Vaticano, e por aí vai. Obviamente, a definição de casamento não comporta esse tipo de distorção, e por isso vemos um monte de autoridades religiosas dizendo na TV que isso não pode, isso não existe, que segundo a Bíblia o homem só se casa com a mulher e coisas do tipo. Se eles estão certos nisso (afinal, como vimos, a heterossexualidade está na raiz desse ritual católico que é o casamento), por outro lado não conseguem enxergar que o verdadeiro sentido da nossa luta não é esse. E que esse desvirtuamento só atrapalha a discussão.
Se alguns casais sentem a necessidade de coroar sua união em cerimônias simbólicas neste ou naquele estilo (como a que discutimos no post anterior), o que a esmagadora maioria dos gays e lésbicas quer é, tão somente, a tutela do Estado para uma situação de fato - a união estável - que não conta com o mesmo reconhecimento jurídico daquelas realizadas entre casais heterossexuais. O nosso ordenamento simplesmente ignora a existência de relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo, e com isso o Poder Judiciário se vê muitas vezes sem subsídios legais para assegurar aos homossexuais a proteção de direitos básicos - ainda que, por uma simples questão de isonomia ("todos são iguais perante a lei"), eles já sejam, em tese, portadores desses direitos.
Sem a proteção do Direito, as dificuldades que os casais gays e lésbicos encontram em suas vidas civis são inúmeras. Sem o reconhecimento de sua união, os cônjuges não têm direito à assistência do Estado em um divórcio litigioso, por exemplo (com muita sorte, podem pegar um juiz mais moderninho que leve a coisa para o lado da "sociedade de fato", ou seja, uma união de duas pessoas para um fim econômico comum, sem a discussão do vínculo afetivo). Outra dificuldade: como, para todos os efeitos, não existe ali um "casal", um não pode incluir o outro como dependente no convênio médico ou no plano de previdência (ainda são poucas as empresas que, por conta própria, reconhecem essa situação em seus empregados). E, se um dos dois vier a adoecer, o outro não pode tomar por ele no hospital as decisões que caberiam a um cônjuge tomar.
Mas há situações ainda mais graves. Como sabemos, os casais gays nem sempre podem contar com o apoio de suas famílias: muitas vezes, não são aceitos e, para ficarem juntos, são obrigados a romper com elas e viver marginalizados, privados do convívio familiar. Mesmo que tenham passado a vida inteira juntos e construído um patrimônio comum, quando um deles morre o outro não é reconhecido como seu viúvo e não tem os respectivos direitos assegurados, inclusive no que diz respeito à sucessão patrimonial. Como não existia ali uma união reconhecida juridicamente, a condução do inventário e a sucessão dos bens não vão para o cônjuge sobrevivente, como numa união heterossexual, mas sim para a família do morto. A mesma família que primeiro vira as costas para o seu membro, negando-lhe amor, carinho e compreensão, depois aparece para se apossar do patrimônio que ele construiu junto com seu companheiro - enquanto esse fica a ver navios.
É exatamente esse o drama pelo qual passa o casal da foto. Fábio (de regata verde) e José (sem camisa), do Rio Grande do Sul, viveram juntos por quase dez anos e construíram um patrimônio comum. No dia 29 de fevereiro, Fábio teve um aneurisma e faleceu. Logo após o enterro, a família de Fábio tomou posse do apartamento do casal em Porto Alegre e expulsou José, sem sequer dar a ele o direito de pegar seus pertences pessoais, e ainda por cima fazendo sérias acusações contra ele (de que teria se apropriado de dinheiro de seu marido). Hoje, José luta para que a Justiça confira à união de quase dez anos com seu companheiro a mesma proteção jurídica que todo casal heterossexual possui. No dia 12 de março, uma liminar (decisão provisória) assegurou a ele a reintegração de posse no apartamento do casal, ou seja, o direito a continuar morando no imóvel enquanto o processo se desenrola. Mas José ainda tem pela frente uma longa luta com os familiares de Fábio, que nunca aceitaram a união dos dois e querem tomar para si tudo o que o casal construiu, com seu esforço próprio.
Essa é apenas mais um entre inúmeros dramas que gays e lésbicas vivem no Brasil, enquanto os lobbies religiosos do Congresso Nacional emperram a discussão de diversas reformas legais e constitucionais, necessárias para que os homossexuais deixem de ser invisíveis para o Direito e sejam contemplados com os mesmos direitos básicos de qualquer cidadão. E o que podemos fazer a respeito? Mais do que imaginamos. Podemos fazer pressão política, jogando com as mesmas armas legítimas que as forças do preconceito usam para impedir nossos avanços. E podemos dar uma força a José. Nas lojas Foch (em SP, Rio e Curitiba) está sendo disponibilizado um abaixo-assinado para ajudar no reconhecimento de que Fabio e José eram mesmo um casal. Isso será usado como prova na ação judicial de José contra a família de seu companheiro. Quanto mais pessoas (amigas ou não do casal, que era bastante conhecido no meio) forem até lá assinar, comentarem em seus blogs, envolverem-se nessa luta, mais chances José terá de que, lá na frente, a Justiça seja feita e ele seja respeitado na sua condição de cidadão. Boa sorte José, estamos todos torcendo por você!
terça-feira, 15 de abril de 2008
É por isso que brigamos
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22 comentários:
Leonardo Huston.
Pois é amigo são história que o povo não fica sabendo... Por isso acompanho assiduamente seus posts e sempre tem coisas muito interessantes, estou em Campinas e aqui não há loja Foch, mas estarei em Sampa no fim do mês e passarei em uma das lojas para assinar o documento, pois são nesses momentos que temos devemos unir-mos.
Fico contente de pelo menos na empresa onde trabalho, um convênio médico, já existe a possibilidade, há pelo menos 1 ano da inclusão de como dependente, em pelo menos um dos nossos planos o companheiro do mesmo sexo, quando vi isso fiquei muito contente, realmente é muito pouco, mas, como costumo dizer: Alguma coisa é sempre melhor do que nada.
MUITO OBRIGADO THI! TEXTO PERFEITO E CORRETO COMO SEMPRE!!!!
Bem, considerando o espírito do post, concordo com você. Só discordo de uns detalhes menores...
Essa alegação de que casamento é eminentemente um ritual católico não faz mais jus à realidade. Aliás, nunca fez, já que outras religiões têm rituais iguais ou muito semelhantes. Mas, voltando à realidade atual, o termo "casamento" perdeu há muito a acepção estritamente religiosa. Tanto é, que está presente em leis brasileiras com um sentido diverso do fornecido pela Bíblia. Segundo a Bíblia (corrijam-me se eu estiver viajando, já que nunca li a Bíblia, graças a D'us, hehe), a união entre homens e mulheres é para todo o sempre. Não existe divórcio, ao contrário do casamento civil, que é eterno enquanto durar. [Aliás, a própria Bíblia, no auge de sua sabedoria e humanidade, comina penas como açoite para alguns crimes contra os bons costumes (afff).]
O que quero dizer é que o legislador usa da Bíblia quando lhe convém. A Bíblia diz que o sexo tem a finalidade única e exclusiva de procriar, mas ninguém proíbe que um casal estéril fornique, né?
Voltando ao meu ponto, eu acho que ficar consultando a Bíblia para tentar descobrir uma suposta vontade de um cogitado deus é de uma imbecilidade ímpar. Não entendo como, em pleno 2008, isso ainda seja discutido por cidadãos de um Estado que se diz laico. Enquanto a merda da religião não for desvinculada do direito, todos os princípios desse pretenso estado democrático de direito (em minúsculas) podem ser jogados numa privada.
E, com base nisso, nisso eu defendo o direito de existirem casamentos gays. Assim como acho apropriado haver casamentos entre travas, e entre uma drag e uma senhora estéril de 98 anos. Claro, se alguém discordar de mim, basta mover uma ação de danos morais na Vara Cível do Vaticano, hihihi.
É como eu digo sempre: me mostre quantas pessoas morrem em nome do "coisa-ruim" e eu mostro quantas morrem em nome de "deus".
Com relação à saída jurídica para isso, eu fico com o TJ gaúcho. Lá, não se cogita essa aplicação porca por analogia do conceito de sociedade de fato às uniões homoafetivas. A tese da Desembargadora Maria Berenice é de que existe uma lacuna na lei. A lei não trata das uniões homoafetivas. Sendo assim, o Judiciário NÃO PODE simplesmente se furtar a reconhecer uma realidade porque o Legislativo não quer produzir leis regulando tais fatos. O jeito é se valer dos princípios vigentes no nosso ordenamento jurídico. Seguindo esses princípios, não consigo imaginar outra solução a não ser igualar as uniões homoafetivas às heteroafetivas. Não vou ficar me estendendo mais, pois isso já está longo e chato para qualquer pessoa normal, hehe.
Quanto ao casal da foto, acho que o José estará bem amparado, já que é gaúcho. Só não vejo muita utilidade processual no tal abaixo-assinado. Mas é um instrumento de pressão social, sem dúvidas.
Bjs laicos!
Ah, da série "classificados de emprego": se alguém quiser ajuda para pleitear direitos homoafetivos, é só me mandar um email. :D
Se não estiver errado, a justiça ja dá direito aos homosexuais assim como os heterosexuais que vivam relação estavel. Além do abaixo assinado, mais importante seria reunião de provas de que o casal vivia vida em comum nesse periodo, como fotos, viagens, compras e claro depoimentos dos mais proximos.
É por essas e por outras que o Brasil é de dar dó(me desculpem a revolta).Os vereadores evangélicos ficam fazendo Lobby para impedir que os gays tenham seus direitos assegurados.Depois vem aquele imbeci do papa em visita falando merda como se ele tivesse no século XV.
O estado é Laico!!!!!!!!!
Vou na Foch assinar.......e força ao cara!!!!!!!!!!
Daniel
Thi, fiquei de ler o post anterior, mas devo admitir que só o título do mais atual já me deixou mega-interessado. É muito interessante saber o ponto de vista de um cara que transita no meio das leis e toda essa buracracia jurídica.
É uma realidade sem cabimento dentro de um país que se declara democrático. A contradição se reflete drasticamente na vida de pessoas que só querem ter o direito à cidadania. Votar não é sinômimo de democracia. Falta pessoas de pulso firme para encarar esse impasse, a começar pelos próprios gays. Nada de se contentar com esse quadro lamentável.
Muito bom post. De um grande clareza e objectividade. Você pegou exactamente nas razões, porque todos os gay devem ter acesso ao casamento civil: O casamento, tal como ele existe, para os heterossexuais é um contrato e enquanto contrato visa assegurar uma série de direitos (e também obrigações)legais que aos conjuges dizem respeito. Negar esses direitos a um casal gay, num estado LAICO, só tem um nome DISCRIMINAçÃO.
Deste lado do atlântico é também por isso porque se luta (Viva o Zapatero que teve a coragem de mudar em Espanha, pena e vergolha para todos os outros, que julgando-se democratas de um estado laico, estão simplesmente, ao não mudarem a lei do casamento civil, a não respeitarem o direito de igualdade, consagrada enquanto nos Direitos do Homem, enquanto um dos direitos fundamentais
http://poorguyfashionvictim.blogspot.com
Eu sou um grande admirador dos seus textos e do enfoque que você coloca, em cada parágrafo. É brilhante!
Peço-lhe desculpas pela confusão e pelas demonstrações de intolerância que aconteceram lá no blog. Não vou deixar de indicar esse lugar aqui como um dos melhores para quem busca informações variadas sobre os homossexuais no Brasil. Como a que você acabou de publicar. Que peço-lhe permissão para publicar lá no blog também.
Se serve de alento, os ataques muito pessoais não foram publicados.
Mais uma vez, meu mais profundo respeito à sua história de vida e renovo minha imensa admiração por você.
;-)
Thiago, sou um antigo leitor de seu blog. Jamais imaginei ser protagonista de tão triste história. Porém estou emocionado com toda esta articulação. Muito obrigado mesmo!
por que voce não usa o "poder" do seu blog para mobilizações ainda maiores em torno desse assunto aqui em SP?
Acho bacana a ideia do abaixo assinado, e certamente irei até a FOCH registrar a minha indignação.
Alex
alexamaral_arq@hotmail.com
estamos todos juntos !!!!
Thi,
Este é o MELHOR texto que li nos últimos tempos na nossa "mídia gay"!
Parabéns!
Cris
Parabéns pelo seu texto. Ficou muito bom!
Seu ponto de vista é sempre fantástico.
Obrigado por um texto tão claro!
Thi, nem preciso concordar com você, não é?
É bom ver que existem pessoas que têm a imensa vontade de ajudar e lutar juntos por um mesmo ideal.
Infelizmente, essa burocracia toda não é só juridica, mas de toda a sociedade. Do plano de saúde ao clube do fim de semana, todos poderiam reconhecer nossos direitos e tornar o mundo um pouco mais humano.
Otimo o texto, perfeito a situação. Você conhece SC? Poh sou de lá! rs. Praia Brava é um sonho mesmo, vc conhece a praia dos amores? tbem é muito show!!... :)
Cara eu vi o Leo e Patciornik no music on board esse ano, eles fizeram um set com o life a loop + vácuo (um projeto de musica eletronica com vocal ao vivo) foi do "CARVALHO"!
parabens pelo texto! seu post foi uma aula!
pena que tem foch aqui em floripa... gostaria de participar .. nao tem como ser on line as assinaturas?
bj
Realmente um absurdo. Eu já tinha lido e sabido sobre o caso, vim ver pois tinha certeza que você tinha escrito algo.
Beijão pra ti.
excelente texto Thiago!
Olá Rapaz!
Fui no site da Foch para me informar melhor,mas infelizmente deu página não encontrada.
http://www.foch.com.br/
Oi Mari! Pelo visto a Foch está mesmo com o site fora do ar. Devem estar reformulando...
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