Ando meio sumido da blogosfera gay, mas não preciso ter bola de cristal para adivinhar que o assunto da semana será a reportagem de capa da Veja de hoje, que acabo de ler. Intitulada "Geração tolerância", a matéria afirma que a "rapaziada" que está vivendo a adolescência nos dias de hoje lida com a homossexualidade de forma bem mais natural. Os fofos e fofas se percebem gays com serenidade, o meio social já não os trata com diferença e, se o outing para os pais ainda causa um choque inicial, a transição para a aceitação tornou-se rápida e tranqüila. Por trás disso, estaria o desapego dessa geração a rótulos e tribos: a sexualidade deixa de ter um peso crucial na definição da identidade, dizendo tudo sobre a pessoa, e passa a ser apenas mais uma característica. Tudo do jeito que nós sempre achamos que tinha que ser.
À primeira vista, o tom otimista empolga e reconforta, mas nós sabemos que a vida ainda não é tão cor-de-rosa assim, nem mesmo nos grandes centros urbanos. Antes de sair por aí detonando o artigo, porém, é preciso considerar o tipo de veículo que o produziu. A função de revistas semanais como Veja e Época (que reproduzem o modelo consagrado pela norte-americana Time) é condensar os acontecimentos mais relevantes em um resumão que possa ser consumido por toda a família, do vestibulando ao casal idoso. Numa sociedade em que é preciso se atualizar o tempo todo, a ideia é suprir o homem moderno com o máximo de informação no mínimo tempo possível - como num fast food.
Se o desafio da Veja não é tão grande quanto o do Jornal Nacional - que, nas palavras politicamente incorretas do editor William Bonner, precisa falar com o "Homer Simpson do Brasil" - a revista tem que saber se comunicar com todo o vasto espectro da classe média brasileira, sua principal consumidora. E isso não é pouco. Na prática, para dar conta do recado, as matérias produzidas devem ser concisas, pasteurizadas e, em tese, neutras. Veja não é uma publicação segmentada, especializada, mas uma revista generalista, que atira para todos os lados, fala com todos os públicos, e portanto não tem espaço para se aprofundar, nem escrever com grande propriedade sobre os temas: ela é apenas uma porta de entrada.
Disso decorrem os furos e derrapadas que Veja dá aos olhos de quem busca nela uma visão de especialista. Para equacionar o binômio "concisão + público amplo", é preciso lançar mão de simplificações muitas vezes grosseiras. No caso específico da homossexualidade, isso redunda em visões e estereótipos que são palatáveis para o consumo da grande massa de leitores, mas não satisfazem quem já está mais familiarizado com o tema. Chamar os teens assumidos de "turma colorida" (argh, o Big Brother Brasil voltou!) ou colocar o casalzinho numa montagem fotográfica cafonérrima pintando um arco-íris na parede (tipo novela das seis com heroína infantil) são exemplos bastante ilustrativos. Dizer que "o objetivo número 1" dos participantes da parada gay de São Paulo na faixa dos 30 anos é "militar" (oi???) evidencia que quem escreveu o texto não só não tinha a menor intimidade com o assunto, como nem mesmo checou tal bobagem com algum colega gay da redação antes de publicar.
Isso não significa que a matéria da Veja seja um desastre. O simples fato de o assunto homossexualidade ganhar espaço de capa - de forma positiva - numa das publicações impressas mais influentes e vendidas do mundo já é digno de comemoração. Mais ainda: o amplo trânsito da revista junto às classes médias faz da reportagem uma grande aliada justamente onde o calo mais nos aperta. Veja pode não ser uma unanimidade absoluta, mas não há como questionar ou desprezar sua enorme capacidade de balizar mentalidades e formar opiniões. Ela pode determinar a escolha do presidente do país. Não é exagero dizer que a classe média vai aprovar o que a revista endossar.
Assim, embora a tchurminha suuuperfervida que estampou as páginas da reportagem com tanta dignidade ainda seja exceção, embora o preconceito ainda seja muito mais forte do que a revista está pintando, o Brasil precisa acreditar que ele está sendo superado, que ele deve ser encarado como coisa do passado, que as coisas já mudaram. Isso ainda é uma meia-verdade, mas Veja está ajudando a transformá-la em verdade. Tenho certeza que o efeito-dominó da reportagem será formidável, com a homossexualidade sendo discutida onde não tinha espaço, e pessoas intransigentes pensando melhor sobre suas convicções. Na pior das hipóteses, na meia dúzia de famílias brasileiras em que o filho gay escolheu o dia das mães para sair do armário, essa reportagem não poderia ter vindo em melhor hora.
domingo, 9 de maio de 2010
Artilharia colorida
Postado por Thiago Lasco às 10:05 AM
Marcadores: análise, brasil, comportamento, gay, jornalismo, revista, sociedade
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17 comentários:
Estava lendo a reportagem e pensei a mesma coisa: hoje o almoço de dia das mães vai ser fervido..rs
abs
Vi a reportagem e compartilho com sua percepção ... as coisas caminham, queiram ou não os radicais homofóbicos ... caminham e avançam sem qualquer dúvida ... mas a luta continua e precisamos de muitos avanços ainda, principalmente na própria consciência dos gays ...
"Isso não significa que a matéria da Veja seja um desastre. O simples fato de o assunto homossexualidade ganhar espaço de capa - de forma positiva - numa das publicações impressas mais influentes e vendidas do mundo já é digno de comemoração. Mais ainda: o amplo trânsito da revista junto às classes médias faz da reportagem uma grande aliada justamente onde o calo mais nos aperta. Veja pode não ser uma unanimidade absoluta, pode ser criticada de diversas maneiras, mas não há como questionar ou desprezar sua enorme capacidade de balizar mentalidades e formar opiniões. Veja pode determinar a escolha do presidente do país. Não é exagero dizer que a classe média vai aprovar o que a revista endossar."
Isto diz tudo ...
Parabéns pela lucidez e consciência crítica
bjux
;-)
è o que vc disse: "o mundo não esta tão cor de rosa assim".
Mas parabéns pela iniciativa das 30 idéias. Adoraria fazer parte de um grupo que não pensa em mudar o mundo, mas sim as pessoas que moram nele.
e sobre a Veja, realmente ela generaliza.
Parabéns pelo post
Concordo totalmente, mas não acho que a Veja seja apenas generalista. Ela é partidária, uma publicação que defende teses (como a da capa da edição, uma realidade do Leblon e dos Jardins). Neste caso, foi positivo para os gays e pode de fato ser transformador. Mas, como diz Caetano, "é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte". :)
Ja estava na hora mesmo, ou passada a hora ( antes tarde do que nunca) de uma Veja, cujo target é a classe media mais atrazadinha, abordar esse tema de frente, afinal de contas o que é da condição humana pertence a todos, e nao apenas as portas fechadas das casas das pessoas.
Beijos e o carinho da Cam
A Veja não deve ser levada a sério em aspecto algum.
Quando houve o plebiscito das armas de fogo, eles colocaram em sua capa a resposta que a classe média deveria dar.
Na eleição de 2006, colocou Alckmin nas capas com sorriso no rosto na última semana antes da votação do segundo turno, num desespero sem precedentes.
Mandou colocar outdoors no Brasil todo (com o Alckmin na capa) e logo em seguida foram proibidos pela justiça eleitoral.
E agora vem com Serra num sorriso forçado para falar das benfeitorias do vampiro (progressão continuada? hello?) e do Brasil pós-Lula, como se fôssemos bonecos que não votam.
Olha, a Veja que destruiu o Collor nos anos 90 é uma triste lembrança. Quem leva a sério suas capas tendenciosas?
Falam de jovens gays hoje e semana que vem falam de como as crianças mandam nas compras de casa, ou seja, nada que realmente vai mudar o mundo ... ou vai?
Também ahco válida a iniciativa, mas não me admiro e nem lastimo. A Veja reproduz a classe média típica brasileira em sua essência. Não poderia ser diferente com uma matéria sobre gays.
estou curiosíssimo pra ler essa matéria, principalmente com tanta gente que conhece a redação da veja sempre falando que é a mais homofóbica do mundo...
Quando via reportagem, tuve a mesma sensação quando divulgaram os selecionados do BBB ou quando anunciam mais um personagem gay na novela das oito: no senso comum, a a homosexualidade caminha da condição de uma "opção sexual" para um estilo de vida. Um plus à aquelas outras generalizações já existentes (gay é engraçado, bom amigo, se veste bem e livre de encanações quanto a sexo).
Acho até que isso explica muito o sucesso de Lady Gaga. A moda é ser um pouco gay (quando não totalmente) e a Veja vai sempre refletir a moda, deixando de lado as outras parcelas existentes, porém ignoradas pela sociedade, não pelo editor da revista semanal.
Rapaz, apesar de morar em frente à "Bolsa", faixa da praia de Copacabana "reservada" aos gays, confesso que raramente vou lá, já que não curto muito ficar na areia, prefiro mil vezes caminhar no calçadão. Mas a frequência lá é bem eclética, com enfase na rapaziada que vem da Zona Norte e dos subúrbios cariocas, já que a primeira estação de Metrô de Copacabana é aqui bem pertinho (Estação Arcoverde).
Aproveito pra agradecer a sua visita, a gentileza do seu comentário e dizer que curto muito os seus textos, inteligentes, sensíveis e super bem articulados.
Grande abraço!
JÔKA
Mas olha que eu adorei a filosofia do limão/malabarista... hahahaha!!!! Hugz!
Que a geração mais nova é menos homofóbica e menos ainda à medida que subimos na escala social é um fato.
Que hoje em dia ser um adolescente gay é MUITO menos assustador do que era há 20 anos também é fato.
Mas essa reportagem da Veja é a versão jornalística do filme Do começo ao fim.
Ou seja um sonho de contos de fadas.
Ao dizer que tudo é uma MARAVILHA para os gays - duvido que seja até mesmo para os meninos classe A que a revista entrevistou, basta que eles saiam do seu mundinho e venham para o mundo real -, ela tem um imenso elemento desmobilizador.
Concordo, porém, do efeito positivo para que os leem essa revista e seguem tudo que ela publica - típico de classe média burrinha. Ou Simpson - como queira.
E chamar uma revista de direita brava dessas de "neutra" realmente...
Você estuda o que mesmo?
Otima analise, e desde que a materia foi realizada pela Veja, de cara u ja passei a ler com certo ceticismo.
Mas tem alguns pontos bons sim.
Abraço!
A reportagem da Veja é mais uma salada de clichês. Lá vem a revista reforçar a idéia, dominante no mundo hetero, de que o grande problema dos gays é ser aceito pelo papai, pelo vizinho, pelo chefe. Oh céus, quanto egocentrismo! Eles realmente se julgam tão importantes assim?
Quer dizer que, uma vez aceitos (ou tolerados), tudo se resolve lindamente? Quanta besteira. Sempre digo (e apanho por isso, inclusive aqui no site) que o inferno do gay é o próprio gay. Ser "compreendido" e aceito pelos esclarecidinhos da escola pode ser muito importante, muito mesmo. Mas o alcance do mundo hetero só vai até a página 33. Dali em diante é que o caldo engrossa.
Ainda estou para ler uma matéria corajosa, verdadeira, abrangente e profunda sobre a questão homossexual, onde ao invés de mamães fofas e papais complacentes, seja mostrada a realidade de um mundo sem eixo, sem respeito, sem constância, sem horizontes, feito de risadas patológicas, de sexo compulsivo e impessoal, de corpos e almas marcados pelo desespero.
A matéria da Veja é mais um panfleto açucarado, no ponto certo para reforçar o discurso dominante e varrer as verdades do assoalho. Parece coisa anos 80, Malu Mulher, sei lá. Uma calda caramelada sobre os preconceitos de lá e os horrores de cá.
Veja só quer sair bem na foto, mais nada. Dizer que a homossexualidade virou "uma causa pela qual lutar" é o cúmulo do ridículo. Acho que bolaram essa matéria como contrapartida pelos absurdos ditos pelas loucas da Igreja, que agora deram de associar pedofilia a homossexualismo. Seja como for, nada muda. Nem Veja, nem os gays, nem a Igreja, nem as mamães.
Interessante que o Profissão Reporter decidiu falar do mesmo tema, para uma mesma massa, usando um véiculo igualmente popular, mas fez uma abordagem totalmente diferente sobre os temas que envolvem a homossexualidade. Você chegou a ver? Se não viu, vale a pena.
Roberto: releia o texto com atenção! Eu escrevi que as matérias "devem ser" neutras. O que não significa que elas o sejam, ou que eu pense que são! ;)
nas dezenas de blogs que comentei falei exatemente isso que vc explica, a veja não vai mostra a realidade nua e crua dos jovens gays, ela é feita pra setores conservadores da sociedade. Eu levo em conta o poder desses meios antes de sair bombardeando o editorial, veio em boa hora e vai influenciar sim a sociedade (começou com o profissão reporter)
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