domingo, 10 de abril de 2011

Jeremy e Wellington

"Lembro-me com clareza de azucrinar o garoto. Ele parecia um merdinha inofensivo. Mas nós soltamos um leão reprimido e deixamos que ele viesse com tudo". Com os versos de "Jeremy", o Pearl Jam ocupava o topo das paradas em meados de 1992. A música, terceiro single do clássico álbum Ten, conta a história de um menino solitário que sofria abusos na escola e não contava nem mesmo com o apoio dos pais. O videoclipe, um dos mais executados pela MTV naquele ano, tem seu ápice na cena final, quando Jeremy entra altivo na sala de aula e, após um corte de cena, seus colegas são mostrados petrificados, com os olhos arregalados de terror e as roupas sujas de sangue. Na história real que inspirou a banda, o garoto se suicida diante da classe, mas quem assiste ao clipe sem conhecê-la tem a impressão de que ele atirou nos colegas.

É inevitável o paralelo com o caso de Wellington Menezes de Oliveira, o rapaz que voltou à escola onde estudara, em Realengo (zona norte oeste do Rio), e abriu fogo contra vários alunos antes de se matar com o mesmo tiro na boca do Jeremy real. Como era de se esperar, a história chocou o país, teve ampla repercussão internacional (yes, nós também temos Columbine!) e a cobertura pela imprensa lançou mão dos conhecidos clichês que reforçam a comoção e alavancam a audiência. Até Dilma entrou na dança e deu uma choradinha básica em público. Longe de mim querer minimizar a tragédia, a dor diante de tantas vidas eliminadas precocemente, mas me parece que a questão não está sendo colocada no foco correto.

É muito fácil apontar o dedo para Wellington e chamá-lo de monstro. Mais difícil é ir além do óbvio e do superficial, e tentar entender o que teria havido por trás de sua atitude, quais as motivações que levaram a atos tão extremos, tão bárbaros. A luz que melhor ilumina essa questão veio da reportagem "Assassino não atirou a esmo, dizem ex-colegas", publicada ontem no jornal Folha de S. Paulo. No texto, a repórter Laura Capriglione conversa com algumas pessoas que haviam estudado com Wellington. E as revelações feitas pelos entrevistados são decisivas para o entendimento do que realmente foi esse massacre.

"A gente chorou pensando que Wellington matou as crianças em represália pelo que aconteceu quando estudávamos juntos", lembra Thiago, o porta-voz do grupo. "Estávamos na sétima série, os hormônios a milhão, e uma das meninas mais malvadas, a C., ficava pegando no Wellington, se esfregando nele e dizendo 'vem cá'. Ele ficava em pânico, gritava 'não, não, não', desesperado. Ele empurrava a C. e ela gritava cada vez mais alto que queria ficar com ele. C. sabia que zoar com o Wellington era um jeito de ficar do mesmo lado dos bonitos e dos inteligentes da classe", recorda Thiago, hoje com 23 anos.

Segundo o entrevistado, ninguém gostava de Wellington a não ser Bruno, um menino fanho e de voz fina, que era destroçado pelos demais e chamado de "bicha". Ele e Wellington eram ridicularizados o tempo todo. Quando as imagens da chacina ganharam a mídia, Thiago e seus amigos se espantaram ao perceber que as vítimas tinham semelhanças físicas gritantes com os antigos colegas que molestavam Wellington. "A gente teve certeza de que ele não matou a esmo. Ele procurou em cada vítima uma característica das pessoas com quem ele tinha rixa na escola. A L., que falava direto 'sai daí, seu feio' quando queria sentar em um lugar que ele estivesse ocupando, é idêntica a uma menina que ele matou. Outras meninas têm um olho, uma boca, um jeito que parecia muito com as meninas da nossa classe. Temos certeza de que, quando subia aquelas escadas, ele viajava no tempo, até dez anos atrás, quando estudávamos juntos. Nós é que deveríamos ter morrido, não era para ninguém ter pago por uma coisa que nós fizemos", conclui.

Não estou tentando defender Wellington ou endossar seus atos. Eu também sofri bullying na escola a minha vida toda, e nem por isso voltei ao Colégio Friburgo armado até os dentes, para promover um derramamento geral de sangue. Evidentemente, o rapaz tinha sérios distúrbios psicológicos, que sua carta de despedida só faz reforçar. Ele era, sim, um sujeito desequilibrado. As crianças que perderam suas vidas ou mesmo foram baleadas não tinham absolutamente nada a ver com os traumas passados do assassino. Tampouco suas famílias. Mas a discussão está sendo desvirtuada.

Mostra-se o caso como uma questão de segurança pública, mais um subproduto da criminalidade. Até concordo que a facilidade com que o rapaz teve acesso às armas merece preocupação das autoridades. Mas a violência de que estamos falando aqui é outra: a violência silenciosa, que acontece diariamente dentro das escolas - da qual Wellington foi, antes de tudo, uma vítima. Crianças aprendem muito cedo a ser perversas, e não conhecem limites. Wellington certamente foi humilhado e maltratado por anos, e ninguém saiu em sua defesa ou lhe estendeu a mão. Seu grito de socorro jamais foi ouvido. As escolas, ao lado dos pais, não podem se esquivar de sua responsabilidade em interferir e controlar esse grave problema chamado bullying, que pode provocar feridas permanentes, mesmo que não culminem em um massacre como o de Realengo. Depois que o estrago já foi feito, é tarde demais para que Thiago e seus colegas arrependidos venham derramar suas lágrimas de crocodilo.

16 comentários:

Daniel Cassus disse...

nossa! Muito bem lembrado. O Wellington eh o jeremy. incrivel como a discussao do bullying ta sendo soterrada pela questao das armas.

Um detalhe: Realengo eh zona oeste.

Bullied biba disse...

Mas, mas, mas...mas ele tirou a vida de 12 jovens. Por conta do tamanho desse hediondo ato, não tem espaço para enxertar divagaçoes psicologicas sobre o bullying que ele sofreu e escambal. Acho muito perigoso tentar "entender"...Seria como tentar entender o holocausto. O bullying deve ficar numa outra latitude.

E sim, todos fomos chamados de bicha na escola e agora tocamos a vida pra frente.

Que ele se dane no colo do diabo. By bullied biba

Diego disse...

Não tinha e ainda não tenho uma opinião definida sobre o que aconteceu. Esse caso deve sim gerar discussões sobre desarmamento, bullying, desvios psicológicos, monitoramento de civis em suas vidas onlines e o que mais render.

Esses tipos de crimes são difíceis de se definir, achar uma única motivação, um único culpado e encontrar um caminho de solução/prevenção, já que são situações não previsíveis.

Você assim como sua colega de profissão da Folha levantam uma questão importante sobre o bullying. Acredito que todos os que sofremos dessa violência carregamos reflexos, desvios e transtornos em nossa conduta e situação psicológica nos anos seguintes de nossa formação e desenvolvimento, inclusive, na vida adulta. São consequências tanto para o bem quanto para o mal.

As discussões sobre o fato da quinta feira ainda não demonstram uma preocupação com as consequências que as vítimas de bullying podem apresentar. Os algozes da infância não saberão se estão lidando com uma vítima predisposta à psico ou sociopatia de nível mais grave.

Dentro do saco do que está sendo discutido sobre o horror da escola de Realengo, incluiria os efeitos do bullying.

PS. Sem mágoas de cabocla! Exorciso meus demônios e me descubro/compreendo uma vez por semana com meu terapeuta, hehehe.

Tico disse...

Assim como o colega acima, tbm ainda não tenho uma opinião totalmente formada sobre o caso.
Apenas algumas posições sobre determinados pontos, como, por exemplo, a da vergonhosa cobertura da imprensa, a hipocrisia de grande parte da sociedade civil e o fato de neguinho tá colocando a culpa em jogos violentos e outras bobagens do tipo, querendo simplificar a questão que é extremamente complexa.
Seu texto está bem interessante, provavelmente o melhor que li sobre o caso até agora, mas não achei legal seu fechamento. Não acho q as lágrimas do Thiago e seus colegas sejam necessariamente de crocodilo. Sofri bullying, bem pouco, verdade seja dita, mas também pratiquei bullying (menos ainda do que sofri). Não pratiquei pq sou malvado, pratiquei pq era imaturo e não tinha a exata noção das consequências que as minhas atitudes poderiam ter, exatamente como a maioria das crianças e adolescentes não tem. Daí a importância de que pais e professores estejam atentos à questão e preparados para discutir isso com seus filhos.
Lembro-me de que no segundo grau eu já era razoavelmente bem maduro pra minha idade e sentia raiva e repulsa qnd via os fodões sacaneando as vítimas de sempre: gays, nerds, feinhos etc. Qnd a zoação era muito pesada ou qnd eu era colega de um dos valentões eu intervia, mas apenas dois anos antes eu tbm já tinha estado na posição de "vilão". Por isso, reforço: pais e professores precisam se preparar para lidar tanto com os agressores quanto com as vítimas, pois são poucos os q tem maturidade e discernimento pra perceber as consequências de suas atitudes aos 13.

Eduardo disse...

Concordo com o último comentário...o texto aborda muito bem a questão, à exceção do último parágrafo. A expressão "lagrimas de crocodilo" dá a entender que os agressores não seriam sinceros em seu arrependimento. Passa até a impressão de que o autor ainda se ressente do bullying sofrido no passado...

wair de paula disse...

Thiago, o caso também é uma questão de segurança pública. Quando se dá a chance de pessoas portarem armas ou não sofrerem as sanções devidas por crimes desta ordem, não adianta ficar analisando apenas o âmago da situação. É como um tratamento médico - checa-se a origem do problema e ataca-se o mal simultaneamente. Em Recife, onde vou constantemente, jovens (aliás, muito jovens - crianças) assaltam portando armas pesadas, e não faquinhas e canivetes - tanto que o número de assaltos envolvendo mortes naquela cidade é um dos maiores do Brasil. Sofresse ele bullying (ou não), se não tivesse acesso à armas, se as sanções juridico-civis fossem mais severas, provavelmente esta reação seria de outra forma, não necessariamente mais branda, mas pelo menos menos abrangente.

Lucas disse...

Acho que chegamos a um cocenso, como dito em um dos comentários, de que a responsabilidade está, sobretudo, nos pais e professores. Nos pais principalmente mas também na maneira como a sociedade é organizada, onde se trabalha 10 horas por dia e a menos que vc coloque uma câmera 24hs pra monitorar seu filho, jamais terá absoluto conhecimento sobre seus atos. E nos professores, é claro, mas também em CADA FUNCIONÁRIO do colégio, recebendo treinamento especifico para lidar com os bullies. Isso irá diminuir as chances de que massacres como esse ocorram, e sobretudo acabar com o sofrimento futuro de crianças e adolescentes que carregam para a vida toda o bully que sofreram.

Existem pessoas que por alguma razão não se importam tanto em serem ridiculizadas e superam isso ao longo do tempo, já outras tem suas auto-estimas destruidas. Algumas poucas irão cometer massacres como esse, e a maioria terão vidas miseráveis caso não tenham o suporte necessário, tendo seu potencial jogado no lixo por causa da "inocencia" da juventude.

Acreditem: crianças e adolescentes bullies sabem EXATAMENTE o que estão fazendo. Podem não ter a clareza exata do efeito futuro que ocasionarão na vida das vítimas, mas sentem prazer perturbando a vida do colega SIM, não é apenas um mecanismo de auto-defesa. Nem todo mundo que comete bully vai ser um pau-no-cu no futuro, mas todo pau-no-cu já foi um bully (ou ainda é, pq tem um monte de adulto por aí que mantém as mesmas atitudes dos tempos de colégio).

Lucas disse...

crônicas gulosas: o cara tinha o direito de portar armas, mas não tinha o registro delas. nao arquiriu elas legalmente. apresenta estatisticas comprovando que a maioria das mortes causadas por arma de fogo são pelas mãos de pessoas que possuem registro (excluindo aí, é claro, policiais, exército, etc), e talvez você tenha uma tese. Proibir o porte de armas para civis não vai impedir a aquisição delas através do mercado negro. Cocaína é proibida e mesmo assim encontrada em qualquer esquina.

Lucas disse...

*consenso

#vergoinha

Lucas disse...

Thiago, gostaria de divulgar aqui meu tumblr/blog/whatsoever, que comecei faz pouco tempo dps de anos sem coragem de expor meus pensamentos online. O post mais recente é justamente sobre o bully.

Aí vai: lucasthompson.tumblr.com

Abs

Mazé disse...

Pesquisando sobre esse triste acontecimento, acabei encontrando o teu blog e vim até aqui dá uma olhadinha e não poderia sair sem deixar meu comentário rs.
Gostei do seu texto! Tbm não concordo com o final assim como outros comentaristas acima dar a entender que os alunos que cometeram bullyng contra Wellignton não estão sendo verdadeiros.
Bom... Realmente a tragédia em Realengo chama a atenção para o bullyng, segurança, saúde mental e educação que os pais devem passar aos seus filhos.
Foi preciso crianças inocentes morrerem para que esses assuntos viessem a tona. O que vem sendo esquecido há tempos pelos nossos políticos... Precisamos urgente de políticas públicas eficientes.
Nada é feito para combater o desarmamento... O que mais vejo na mídia é que pessoas compram armas como se compra banana na feira...é mto fácil adquirir no mercado clandestino. Como no caso de Wellington apenas foram encontrados os mediadores que venderam a arma a ele e o principal responsável de passar a arma aos mediadores até agora nada de ser encontrado.
E sobre o bullyng... Tbm fui vítima de bullyng, mas nem por isso agi de forma violenta com quem quer que seja, e dizer que todos que sofrem bullyng um dia irão agir dessa forma eu discordo. Alguns podem sim desviar para o mal e outros para o bem. Temos que deixar claro que não há uma regra, tbm há suas exceções, sou prova disso... Graças à Deus nunca pensei em me vingar de ninguém.
Podem até me atirarem pedras, mas o que eu não concordo com o que muitos chamam Wellington.. de monstro. Gente vamos pensar melhor no que esse rapaz sofreu há anos.. era alvo de humilhação na escola e fora dela, como vc mesmo se refere no texto: "Alguém nunca deu a mão", realmente isso nunca aconteceu. É triste como as pessoas só o crucificam mesmo depois de morto. Pelo que tudo indica segundo relatos de cartas deixadas é que ele era doente. Chamado de monstro por muitos... MONSTRO? Monstro é o estado que ver seus doentes e não faz nada.. Sou absolutamente contra o fim dos manicônios, pessoas como Wellington deveriam estar internados.. Sou a favor que existam os CAPS, mas não ao fim dos Hospitais psiquiátricos, claro, que é de grande importância que o paciente seja tratado no convivio da família, mas não são todos que podem ser tratados em casa. Nem todos psicóticos oferecem periculosidade, mas mtos sim e precisam de internação.
Nós pais, precisamos de mais atenção aos nossos filhos, é preciso colocar limites. Educar não é fácil, mas mais do que nunca é preciso e educação vem de casa.
Fica o apelo de todos nós brasileiros aos políticos por uma atenção especial a segurança, aos nossos jovens, a saúde mental da nossa sociedade e aos pais para reverem melhor como estão criando seus filhos.

Diego Rebouças disse...

Mas quem garante que a hipótese dos colegas da época de colégio é correta? Nunca será possível saber. A reportagem se baseia em uma hipótese, tão somente.

Acho que o problema aí é mais complexo, nossa sociedade não educa suas crianças com valores culturais mais amplos - tanto para que as que sofrem bullying tenham onde se apoiar quanto para as que cometem bullying conheçam outras formas de interagir.

Anônimo disse...

olá , achei muito pertinente este recorte para os bizarros fatos.


mas mudando de assunto

tiago poderia enviar suas dicas da sua viagem a praga. estou indo pra lá em breve. se puder , agradeço muito. obrigado. Claudio

Discípulo disse...

O problema do foco no bullying é que ele responsabiliza a sociedade, não o Wellington, e isso é um tipo de mea culpa que nossa sociedade se recusa a fazer. Ótimo texto, Thi! ;-)

Lobo disse...

A minha posição é a mesma do Diego: são apenas hipóteses. E por mais que essas hipóteses possam dar uma luz dos porquês, não deixam de ser hipóteses apenas. Hipoteses que não mudam o desfecho dessa história, mas ainda assim pode servir para suprir a necessidade de "entender porque" dos envolvidos.

Mas né, dá agonia ver o viés de discussão que essa situação está gerando. E aquela sensação que estão fazendo tudo errado...

Anônimo disse...

Pois é, junte problemas psiquiátricos, bullying, solidão, morte da mãe, tudo isso em uma mente fraca... além da facilidade em se comprar uma arma, né.